"É um fenómeno curioso: o país ergue-se
indignado, moureja o dia inteiro indignado, come, bebe e diverte-se indignado,
mas não passa disto. Falta-lhe o romantismo cívico da agressão. Somos,
socialmente, uma sociedade pacífica de revoltados” - Miguel Torga, Diário (17-09-1961).
Os portugueses são intencionalmente atingidos na sua dignidade e
direitos. Ofende-se a vida e a respeitabilidade do homem. Elementares princípios
de igualdade, hoje renomeados de «equidade», reconhecidos no direito natural, e
que foram desde sempre considerados como a fonte dos direitos políticos, são
hoje despudoradamente colocados em causa. Tornou-se até “normal”, quando se
trata de direitos, que uns, sobretudo se forem políticos, sejam mais iguais do
que os outros.
Curiosamente, para uma imensa massa de gente, dir-se-ia que tudo
parece por vezes estar a acontecer apenas aos outros. Protestando a medo, algo
despercebidos, esquecem que num passado ainda não muito distante, razões de
igual gabarito serviram para justificar tudo, desde a escravatura à
discriminação de todo o género e ordem.
Essas razões podem resumir-se, hoje, na expressão custe o que custar!
Desde a imposição de mais horas de trabalho, passando pela
famigerada inadaptação e mobilidade, até ao estafado argumento da
culpa do trabalhador pelos baixos índices de produtividade, vale tudo. O que
importa é conseguir-se a legitimação da exploração comandada por uma elite e
assim tornar respeitável, aos olhos das massas que protestam mas não actuam, a ganância
e a política do lucro fácil.
O Estado deveria ser o garante e o protector dos direitos de
todos nós. Deveria combater tudo isto. Mas, na prática, o Estado, tal como o
conceberíamos numa verdadeira República, já não existe. Foi assaltado pelas
mordomias, pelos efémeros jogos de poder, pelos interesses corporativos de
grandes grupos económicos. Em suma, foi assaltado por uma renovada clique
ideológica, com raízes profundas na xico-espertice lusitana. É caso para
dizermos que, finalmente, o ladrão encontra-se como e onde quer: bem dentro do
cofre!
No meio deste tormento, os cidadãos do interior sofrem ainda
mais do que os outros. Em época de crise agrava-se o esquecimento das minorias
eleitorais, dos princípios, dos valores. Há alturas em que a democracia não
passa mesmo de uma chatice. E com tanto estorvo à mistura, salvem-se ao menos
os interesses de alguns e, já agora, uns quantos tachitos de permeio. Isso foi
patente na questão das portagens das SCUT, com deputados e autarcas a optarem
descaradamente pelo partido, contra o povo que os elegeu. Voltará a acontecer sempre
que for necessário. Liquidar-se-á assim o interior a pouco e pouco. O realismo de
uma nova hipocrisia instituída a isso obriga.
É caso para se dizer, como Balzac, que para não corar diante da
sua vítima, o homem, que começou por feri-la, mata-a. Que Deus nos acuda!
(artigo publicado no jornal O Interior em 9 de Fevereiro de 2012)