domingo, fevereiro 07, 2010

O Murmúrio do servilismo

José António Marina no seu livro, “ A paixão do poder”, descreve a obediência como protagonista, na necessidade da conveniência e na vida espiritual de toda a história do ocidente.

Quando a mulher ou o homem usa a sua própria razão, recusa a inseminação dos preconceitos, e recusa o hábito de ceder, perante a luz da sua própria razão, a estas ameaçadoras figuras da rebelião e da rebeldia. É-lhes apontado incisivamente o dedo, o dedo em riste, agressivo e prepotente, da denúncia da desobediência, insolência, altivez, conflitualidade e até da demência.
É-lhes desencorajada a dita revolta insolente da razão. Há que eliminar e excluir estas bárbaras e bárbaros, estas loucas e estes loucos, há que eliminar o perigo e o pânico das suas inflexões abusivas na agonizante ordem e nos gravados costumes.
O cenário do político português ou, diria melhor, do politicamente correcto que recusa os incertos, os joviais, os imaturos e os perniciosos vínculos com o intelecto, da reflexão e da razão e, instala a necessidade da obediência universal do remar na sonolência dos pantanais, submissa à voz do chefe.
Vejamos com que despudor, na Assembleia da República, só o simples facto de furar a disciplina de voto, tem de ser autorizada e sujeita à ordem do escrutínio superior.
Vejamos com que despudor, nas assembleias municipais, se mobiliza a comovente união de mãos, a aliança similar à das grandes famílias reais, à ideia de família política, patriarcal ou matriarca, onde se exaltam e aceitam os laços dos serviçais afectos, onde se mobilizam as paixões como pilares da vinculação.
Vejamos com que despudor, artificialmente, se inventa um inútil emaranhado de instrumentos documentais, pré-orçamento municipal, proto-requerimento municipal, sub-deliberação municipal, sob-moção municipal, propositadamente estéreis e truncados de imediato a uma vaidosa hermenêutica “bíblica”, apenas ao alcance de avatares e avaros, com o único intuito de desmobilizar, subordinar e disciplinar. A grandeza e dignidade com que nos impingem e nos atafulham com estas relíquias instrumentais são directamente proporcionais à sua inutilidade.
O estatuto inabalável da obediência!!!
Não está longe a visão contratualista de Hobbes, a transferência voluntária de direitos mútuos, ou a concertação decorrente da transferência de poderes reconhecidos pelo indivíduo, acrescento eu, para os que se auto-institucionalizam na lábia implacável, veloz e viciada, como os mais sábios, os mais capazes e os mais reformadores, mas, ao contrário de Hobbes, a cedência no braço-de-ferro da nossa autonomia não acontece para a manutenção da paz, mas no apetite e compulsão voraz de poder e domínio, dos que, agora à semelhança do Leviatão hobbesiano, não querem depender das leis civis.Leis que eles próprios inventam por manha, para que o seu bem não desperte consciências e, mantenha bem viva, na memória colectiva, a ameaça, sempre perigosa, do monstro marinho.
O estatuto inabalável do servilismo!
O que, sempre servil, se deixa absolver no antídoto do discurso, implicitamente aceite, que excita a heróica e recreativa defesa da pátria, “ó pátria sente-se a voz”!!!
A voz que se quer altiva, ameaçadora e prepotente.
Que cale e não consinta.
«Não o poder, não a glória, não o poder: a liberdade, unicamente a liberdade», Fernando Pessoa, livro do Desassossego.

(artigo publicado no jornal O Interior em 4 de Fevereiro de 2010)