Ao longo dos tempos existiram momentos de uma crença refinada, abrupta que parece mover sociedades inteiras.
O que é, nunca o será. O que não fazem, fingem fazer. O que parece mudar, imobiliza-se.
É uma força que se baseia na prosápia de um ermitão que engana os fracos, os frágeis e os encaminha para o mais divinal dos ofertórios.
É a hipocrisia na sua plenitude, de transformar o real, verdadeiro e concreto em irreal, abstracto e destrutível.
Vem tudo a propósito dos acontecimentos que vão marcando a vida de todos nós. Quer intramuros, quer num plano, dito nacional. Sim, dito e ditado para anacoreta apontar e debitar quando os argumentos falham e o confronto com o real pede meças ao discurso do chefe.
O último relatório da Inspecção Geral de Finanças à Câmara da Guarda é ainda motivo de análise. Sê-lo-á por muitos e longos tempos.
Porquê?
Desde logo pela hipocrisia de o guardar no baú dos segredos, sem o dar a conhecer a quem legitimamente tem o direito de o conhecer.
O cidadão contribuinte que vai pagando todo o festim da luxúria camarária, tem todo o direito de conhecer o relatório da auditoria, em tempo útil e oportuno para o poder discutir em sede própria.
Assim, se faz e constrói a vida democrática na transparência, na lisura e no facilitar, como a lei o exige, todos os documentos administrativos a qualquer cidadão ou grupo de cidadãos. Há quem não perceba tão basilar atitude democrática.
O executivo tem toda a legitimidade democrática para governar, de preferência bem!!
À Assembleia Municipal compete-lhe fiscalizar a acção do executivo. A Assembleia é, por enquanto, um órgão deliberativo por excelência. Difícil de perceber?
Apesar de tanto secretismo, o relatório está, por iniciativa do Bloco de Esquerda, disponível na internet em http://www.scribd.com/doc/24288303/igf.
Aconselha-se vivamente, ao leitor, uma consulta atenta ao mesmo e, formular o seu próprio juízo de valor sobre a tão propagandeada e falseada gestão camarária.
O relatório é, indesmentivelmente, algo de preocupante para todos os cidadãos do concelho da Guarda.
Uma gestão enganosa, com empolamento das receitas. Orçamentais onde os projectos sobravam e onde, a cada ano, as receitas inscritas já estavam, irremediavelmente, cativas para dívidas assumidas e não pagas.
Um endividamento municipal assustador que compromete, de que maneira, o futuro do concelho. Pelos nossos cálculos e face ao último orçamento, já ultrapassa, neste momento, os 60 milhões de euros.
A situação financeira da tesouraria totalmente desequilibrada.
A dívida a fornecedores exorbitante; os juros pagos pelas dívidas atingiram valores impensáveis, para quem dizia aos sete ventos, que a Câmara estava no bom caminho. Parece, não haver cata-vento.
Só em juros, nos atrasos de pagamentos a fornecedores, pagaram-se 1,5 milhões de euros.
A questão da dívida a terceiros conduz a situações preocupantes, nada desejáveis, num regime democrático. Desde logo, a péssima imagem da Câmara, de má pagadora. Só em 2007 o prazo de pagamento atingia 535 dias; mas, se isso pouco ou nada incomoda alguns, outro aspecto deveria exigir atenção ao executivo, a dependência, sempre perigosa, em regime democrático, com esses fornecedores. O estado de dependência e o consequente poder negocial desvanece-se e as negociações tidas em sede de igualdade, não nos admira que passem a negociatas em que a parte credora determina o preço sem que a Câmara tenha capacidade reivindicativa; e, talvez, a última, mas não a menos importante, o efeito dominó da economia, ou seja, para quem tanto apregoa a necessidade de captar investimento para o concelho, proporciona, de que maneira, a falência de muitas empresas com o não pagamento dos serviços prestados.
Que falácia mais enganadora – hipócrita!
Violou-se sistematicamente o princípio do equilíbrio orçamental, ou seja, houve sempre, mais olhos que barriga, para calar as hostes da irmandade.
Exemplar. Melhor, só nos casos BPP, BPN e BCP.
Quem salvou o afundanço total da barca foi o plano do «amigo» Sócrates com o famigerado «Pagar a tempo e horas», obtendo um empréstimo, pasme-se, de 17 365 060 €!!! Caso contrário, a Câmara podia fechar portas. Mas, por este caminho pouco faltará, infelizmente.
Atente-se que a auditoria diz respeito, apenas e tão só, ao intervalo de tempo entre 2005 e 2007. Ou seja, acrescente-se a tudo quanto temos estado a dizer, um ano de 2008 e, principalmente, o de 2009, o das eleições, das promessas, dos porcos no espeto e teremos o cenário perfeito do descalabro total.
Viva a pelintragem!!
Mas, se o executivo «escondeu» até onde pode o relatório da auditoria, pois a mesma deu entrada nos serviços da Câmara a 23 de Outubro, que dizer de um parágrafo do relatório, quando é dito, taxativamente, que a Câmara prestou informação insuficiente e incorrecta à Direcção Geral da Administração Local, nomeadamente, no que concerne à informação financeira relativa à participação da Câmara na Associação de Municípios da Cova da Beira, na Comurbeiras e na WRC, SA. Espanto total!! Ou nem tanto!!
Por outro lado, foi detectada pela mesma Inspecção um valor, para menos, de 321 381,46€ ao nível das receitas que serviram de base ao cálculo dos limites de endividamento de 2007 e um valor de endividamento líquido, para menos, no montante 530 975,93€!!
Estranha-se. Que vai fazer a Inspecção? Emular o bode expiatório? Aguarda-se!!
Por último, fica uma referência à prepotência que o executivo vai demonstrando, em termos de discussão do orçamento. A lei n.º 24/98 de 28 de Maio, sim é uma lei, não é um decreto ou um despacho, determina que os partidos políticos representados nos órgãos deliberativos (Assembleia Municipal), e que não façam parte dos correspondentes órgãos executivos, têm o direito de ser ouvidos sobre as propostas dos respectivos orçamentos e planos. Tudo simples e esclarecedor. Só que o executivo da Câmara Guarda não entende, ou não quer entender o sentido da lei. A queixa seguiu para quem de direito. Alguém terá de esclarecer. Isto para já não falar num Orçamento participativo onde todos os cidadãos tivessem direito a opinar. Mas, isso é já demasiado à frente.
Não tão à frente, pois em 1912 o deputado Jacinto Nunes, dizia a propósito dos poderes da Assembleias Municipais que «fazer intervir o povo nos negócios administrativos era a forma de preparar esse povo para a vida cívica, formando cidadãos».
No ano do centenário da implantação da República em Portugal importa conhecer o que alguns já pensavam da forma democrática de participação dos cidadãos no que a todos diz respeito.
Mas cem anos não chegam para mudar atitudes, métodos e formas de ser e estar na democracia.
Quando se diz que a Guarda não tem tradições republicanas sabemos o que dizemos, face ao poder das famílias monárquicas e monásticas e às dinastias que perduram no tempo.
Outra coisa bem diferente é haver e, felizmente, ainda bem, figuras republicanas.
Coisas bem diferentes…
(artigo publicado no jornal «O Interior» em 14/01/2010)