Fernando Rosas faz uma leitura atenta da nova lei sobre gestão dos bens públicos.
«Que ninguém tenha dúvidas. Com esta lei, estará oficialmente aberta a corrida à gestão, aluguer ou aquisição privada do património público, incluindo os principais monumentos e emblemas nacionais.
Encontrar o "equilíbrio entre protecção e rentabilização", por forma a garantir "uma autêntica comercialidade de direito público" que responda às "novas exigências económicas e sociais que apontam no sentido da rentabilização do domínio público" e de uma "riqueza colectiva a explorar".
As citações que acabei de ler não são da minha autoria. Fazem parte do preâmbulo do novo regime jurídico dos bens públicos proposto pelo Governo. As intenções demonstradas pelo resto do texto são ainda mais perturbantes.
Que ninguém tenha dúvidas. Com esta lei, estará oficialmente aberta a corrida à gestão, aluguer ou aquisição privada do património público, incluindo os principais monumentos e emblemas nacionais.
Já sabíamos que, sempre que possível, a doutrina do governo é entregar a gestão dos recursos públicos à gestão privada. Que concessiona o futuro desses serviços a empresas que os vão gerir quase até ao fim do século. Mas, o que nunca pensávamos que fosse possível, e daí o espanto perante esta proposta de lei, é que o Governo tivesse o desplante e o topete de se lembrar de privatizar o passado e a memória histórica de uma nação e de um povo. É isso, e nada menos do que isso, que está em causa.
Ao estabelecer a dissociação entre propriedade e poderes de domínio, esta proposta propõe a submissão do "património público à propriedade privada, mas mantendo sobre ele um vínculo real de destinação pública". Por outras palavras. O Estado continua a definir os monumentos e edifícios que são merecedores de serem encarados como património público, independentemente de serem propriedade pública ou privada.
Em declarações a um jornal diário, José Aguiar, presidente de um organismo consultor da UNESCO, reconhece que o mote desta lei é "alienar" o património. É uma alteração de paradigma. O património histórico do país deixa de ser encarado como a memória histórica e simbólica de uma nação, mas como uma mercadoria como qualquer outra, transaccionável através dos normais mecanismos de mercado.
Se, como reconhece a própria lei, a gestão do património histórico passará a ser feita em nome das "novas exigências económicas e sociais que apontam no sentido da rentabilização do domínio público", cedo percebemos que esta proposta é a receita certa para o maior crime alguma vez efectuado contra a defesa da história e do património colectivo.
Sempre em nome do que o Governo define como a "riqueza colectiva a explorar", é só esperar o dia em que um ministro da cultura com mais jeito para o negócio se lembre de entregar a Torre de Belém a uma discoteca, os claustros dos Jerónimos para uma empresa fazer a exposição dos seus últimos cortinados, o mosteiro de Alcobaça a um hotel de charme e o Palácio da Ajuda, onde jaz um ministério falido e politicamente moribundo, a uma qualquer consultora de negócios privados.
Argumentará o Governo, e a bancada que o suporta, que os exemplos são disparatados e que ninguém de bom senso se lembrará de tal ultraje aos portugueses. Talvez. Mas as leis não devem ser redigidas a pensar no bom senso de quem as aplica mas nas possibilidades que entreabrem. E essas, preto no branco, são aquelas que aqui avançámos.
Se todo o texto é claro nas possibilidades de rentabilização económica proporcionadas pela alienação do património público, não deixa de ser merecedor da maior preocupação que a gestão do seu estatuto seja confiada a um ministério, como o da cultura, que o próprio ministro reconhece estar falido depois de sucessivos anos de desinvestimento e má gestão dos seus antecessores, como o actual ministro Augusto Santos Silva.
De acordo com o programa que o Partido Socialista levou a votos, o actual governo propunha "retirar o sector da cultura da asfixia financeira em que três anos de governação à direita o colocaram" e "reafirmar o sector como prioridade na afectação dos recursos disponíveis. Neste sentido, a meta de 1% do Orçamento de Estado dedicada à despesa cultural continua a servir-nos de referência de médio prazo."
Só que, com o PS, o orçamento para a cultura não subiu. Desceu e desceu muito. Não só nunca chegou ao 1% do produto, de que falava o programa eleitoral, como passou de 0,7 para 0,2%. Para quem ia investir na cultura, o seu orçamento é hoje três vezes menor do que há três anos e não representa mais de 20% do valor que o PS prometeu aos eleitores. Apesar da forte concorrência, poucas promessas do Governo se revelaram mais falaciosas que a do reforço do investimento na cultura.
E é este ministério, falido e sem relevância política, que vai gerir o estatuto dos bens públicos, incluindo os principais monumentos nacionais. O mais extraordinário é que o Governo ainda nos quer fazer acreditar que um ministério nesta penúria é uma entidade própria para resistir à pressão privada sobre os bens públicos mais apetecíveis. Eu sei que estamos em Dezembro, mas não nos peçam para continuar a acreditar no Pai Natal.
Esta proposta de lei tem que ser esquecida ainda antes de acabar a sua discussão pública e o Governo tem que ouvir as vozes e organizações que, de todos os quadrantes, se têm insurgido contra esta lei contra o património e a memória.
Encontrar o "equilíbrio entre protecção e rentabilização", por forma a garantir "uma autêntica comercialidade de direito público" que responda às "novas exigências económicas e sociais que apontam no sentido da rentabilização do domínio público" e de uma "riqueza colectiva a explorar".
As citações que acabei de ler não são da minha autoria. Fazem parte do preâmbulo do novo regime jurídico dos bens públicos proposto pelo Governo. As intenções demonstradas pelo resto do texto são ainda mais perturbantes.
Que ninguém tenha dúvidas. Com esta lei, estará oficialmente aberta a corrida à gestão, aluguer ou aquisição privada do património público, incluindo os principais monumentos e emblemas nacionais.
Já sabíamos que, sempre que possível, a doutrina do governo é entregar a gestão dos recursos públicos à gestão privada. Que concessiona o futuro desses serviços a empresas que os vão gerir quase até ao fim do século. Mas, o que nunca pensávamos que fosse possível, e daí o espanto perante esta proposta de lei, é que o Governo tivesse o desplante e o topete de se lembrar de privatizar o passado e a memória histórica de uma nação e de um povo. É isso, e nada menos do que isso, que está em causa.
Ao estabelecer a dissociação entre propriedade e poderes de domínio, esta proposta propõe a submissão do "património público à propriedade privada, mas mantendo sobre ele um vínculo real de destinação pública". Por outras palavras. O Estado continua a definir os monumentos e edifícios que são merecedores de serem encarados como património público, independentemente de serem propriedade pública ou privada.
Em declarações a um jornal diário, José Aguiar, presidente de um organismo consultor da UNESCO, reconhece que o mote desta lei é "alienar" o património. É uma alteração de paradigma. O património histórico do país deixa de ser encarado como a memória histórica e simbólica de uma nação, mas como uma mercadoria como qualquer outra, transaccionável através dos normais mecanismos de mercado.
Se, como reconhece a própria lei, a gestão do património histórico passará a ser feita em nome das "novas exigências económicas e sociais que apontam no sentido da rentabilização do domínio público", cedo percebemos que esta proposta é a receita certa para o maior crime alguma vez efectuado contra a defesa da história e do património colectivo.
Sempre em nome do que o Governo define como a "riqueza colectiva a explorar", é só esperar o dia em que um ministro da cultura com mais jeito para o negócio se lembre de entregar a Torre de Belém a uma discoteca, os claustros dos Jerónimos para uma empresa fazer a exposição dos seus últimos cortinados, o mosteiro de Alcobaça a um hotel de charme e o Palácio da Ajuda, onde jaz um ministério falido e politicamente moribundo, a uma qualquer consultora de negócios privados.
Argumentará o Governo, e a bancada que o suporta, que os exemplos são disparatados e que ninguém de bom senso se lembrará de tal ultraje aos portugueses. Talvez. Mas as leis não devem ser redigidas a pensar no bom senso de quem as aplica mas nas possibilidades que entreabrem. E essas, preto no branco, são aquelas que aqui avançámos.
Se todo o texto é claro nas possibilidades de rentabilização económica proporcionadas pela alienação do património público, não deixa de ser merecedor da maior preocupação que a gestão do seu estatuto seja confiada a um ministério, como o da cultura, que o próprio ministro reconhece estar falido depois de sucessivos anos de desinvestimento e má gestão dos seus antecessores, como o actual ministro Augusto Santos Silva.
De acordo com o programa que o Partido Socialista levou a votos, o actual governo propunha "retirar o sector da cultura da asfixia financeira em que três anos de governação à direita o colocaram" e "reafirmar o sector como prioridade na afectação dos recursos disponíveis. Neste sentido, a meta de 1% do Orçamento de Estado dedicada à despesa cultural continua a servir-nos de referência de médio prazo."
Só que, com o PS, o orçamento para a cultura não subiu. Desceu e desceu muito. Não só nunca chegou ao 1% do produto, de que falava o programa eleitoral, como passou de 0,7 para 0,2%. Para quem ia investir na cultura, o seu orçamento é hoje três vezes menor do que há três anos e não representa mais de 20% do valor que o PS prometeu aos eleitores. Apesar da forte concorrência, poucas promessas do Governo se revelaram mais falaciosas que a do reforço do investimento na cultura.
E é este ministério, falido e sem relevância política, que vai gerir o estatuto dos bens públicos, incluindo os principais monumentos nacionais. O mais extraordinário é que o Governo ainda nos quer fazer acreditar que um ministério nesta penúria é uma entidade própria para resistir à pressão privada sobre os bens públicos mais apetecíveis. Eu sei que estamos em Dezembro, mas não nos peçam para continuar a acreditar no Pai Natal.
Esta proposta de lei tem que ser esquecida ainda antes de acabar a sua discussão pública e o Governo tem que ouvir as vozes e organizações que, de todos os quadrantes, se têm insurgido contra esta lei contra o património e a memória.
Fernando Rosas (Declaração na Assembleia da República, 18 de Dezembro de 2008)