quarta-feira, maio 28, 2025

Ponto de vista

Oito dias após as últimas eleições legislativas, as terceiras em três anos, e com o pó a assentar nos pechisbeques das sedes partidárias, começa a ser altura de se analisar, friamente, o muito que aconteceu e, principalmente, o que nos espera o futuro após a chamada dos portugueses às urnas.

Como é do domínio público, estas eleições, aparentemente, visavam escrutinar, e apenas isso, o comportamento de um primeiro-ministro que teria usado e abusado de avenças enquanto líder partidário e chefe do governo. O voto na urna determinaria, segundo alguns, a forma mais expedita de castigar o partido mais votado nas eleições de há um ano, pelo comportamento do seu líder. Como se a democracia se esgotasse num simples papel dobrado em quatro e deitado no caixote para aquilatar da tal ética que diziam ter faltado. Triste conceito de democracia e menos ainda da ética. Apresentados os concorrentes às eleições, deu-se início à feira das vaidades. Iniciaram-se os debates com os feirantes do costume a apresentarem os seus produtos contrafeitos e já bem debutados. A feira perdia interesse e havia que a animar. Os canais do lixo, sempre atentos à forma de ganhar audiências e dinheiro com a feira, vai de a tornar ridícula, anedótica num número de circo impróprio para quem queria debate sério sobre os graves problemas dos portugueses. E, assim, os canais do lixo tudo fizeram para tornar a campanha eleitoral numa comédia de mau tom e gosto. Entrevistas e mais entrevistas à elite, mas debate dos problemas sérios que atormentam os portugueses não houve. Houve zangas e arrufos e mais nada. Acusações pessoais, dos comportamentos abjetos na Assembleia da República, das promessas prometidas e não cumpridas, ou seja, passado e presente e nada mesmo nada sobre o futuro. Para a distração ser ainda maior, as arruadas, os beijos e abraços, as conversas de conveniência e muita ilusão no ar. E para rematar o ramo das urtigas fomos brindados com os diretos de uma indisposição de um concorrente com perseguição de automóveis e ambulâncias que transportavam o dito indisposto. Sem falar dos diretos dos hospitais e das acusações de linchamento, nunca provadas. Mas também vimos a elite a dançar o fandango e principalmente a chula, a dança preferida da realeza, com punhos de renda e muita frase de salão. A juntar a esta romaria eleitoral, sem nunca esquecer os célebres porcos no espeto, os canais do lixo proporcionaram outra forma de distração, os bobos do reino.     

Nos tempos da monarquia, os bobos ou bufões, eram empregados da monarquia encarregados de entreter a corte. Tinham a liberdade para criticar o rei sem medo de punição, pois a sua função era divertir. Hoje fazem-no nos canais de lixo refastelados em poltronas e a compasso de perguntas previamente ensaiadas com o seu interlocutor e promovem as palmas com muito riso e pouco ou nenhum siso. Isto, quer queiram ou não, não é fazer política. É espetáculo da pior espécie. Esta é uma inversão deveras deliciosa da hierarquia dos tempos do passado: outrora, o bobo fazia rir o rei; hoje, o rei — ou o aspirante ao trono — mendiga a bênção do bobo para que o povo o idolatre e deite o papelinho no seu proveito na urna. O político, ao rir-se de si, esconde tudo de mau que o seu programa tem. E o humorista, ao fingir irreverência, não morde, acaricia com graça, como um cãozinho de salão treinado para agradar tanto ao dono ou dona como à ralé. A política é servida na forma de comédia trapaceira. O poder, que sempre teve queda para a vaidade, descobriu no humor não o seu espelho, mas o seu cosmético, porque agora reflecte o trapaceiro com charme e com muito perfume de latrina de uma qualquer central de camionagem. Não é que isto cause algum espanto aos cidadãos portugueses, aos que estudaram. Lembrar que também Nero se achava artista, tocava lira entre incêndios e mandava decapitar senadores que desafinavam nos aplausos. E os imperadores romanos, em geral, conscientes de que o povo queria pão e circo, alternavam o chicote com o dichote. Mas ao menos os gladiadores tinham espadas e os bufões, juízo; hoje, os políticos procuram o riso como os fariseus procuravam moedas no templo. O que é feito do sarcasmo afiado, da crítica que fere que já existiu no nosso Portugal? O humorista de hoje, em vez de morder, acaricia; em vez de expor a nudez do rei, ajuda-o a escolher a gravata; em vez de lançar a gargalhada com uma pedrada, oferece a piada emoldurada, com fita colorida. Transformaram-se em estilistas do poder, em cabeleireiros da irreverência, passando pó de arroz na cara da impostura. Já não fazem rir da tragédia: fazem rir com o tirano — e não do tirano. A sátira, essa alforreca com tentáculos urticantes e que podia causar queimaduras nos príncipes bem-falantes, desapareceu para bem dos banhistas das águas turvas. E, no fundo, os novos bufões aspiram àquilo que fingem desprezar: o aplauso do palácio e a recompensa material da transformação da política em comédia. E o aviso fica feito aos mais incautos. Riam-se dos corruptos, dos hipócritas, dos moralistas de plástico, dos políticos. Mas não se riam com eles como se fossem vossos amigos de adolescência. Há um abismo entre rir deles e rir com eles. E esse abismo, uma vez atravessado, transforma a sátira em selfie, o bufão em cúmplice, e o eleitor num espetador distraído que bate palmas enquanto lhe oferecem, em bandeja de lata, uma vida de miséria. Como diria o outro “é a vida”. Mas dos boémios, estróinas e, folgazões que vivem à nossa custa.

Tenham uma excelente semana.