quarta-feira, janeiro 29, 2014

Ponto de vista

Já todos percebemos que a campanha para as eleições legislativas e presidenciais está na rua. 
Ou seja, abriu a caça aos patos, que somos nós. 
Encontramos esses sinais de caça, por exemplo, no discurso do sucesso orçamental. 
Eu, que só consigo ver os patos cada vez mais magros e os coelhos cada vez mais gordos, acho que para variar não nos ficava nada mal refletirmos nas diferenças entre láparos e aves patudas.
Quando tudo aponta para um défice na ordem dos 4,4% do PIB e o governo canta vitória, impõe-se que percebamos que se não queremos acabar todos no forno, convém esmiuçar os dados apresentados.
Afinal o que é que se ajustou, e como?
O ajustamento de que o governo se vangloria foi conseguido à custa do aumento brutal dos impostos sobre os rendimentos do trabalho. Foram cobrados mais 3,5 mil milhões de euros em impostos do que em 2012. 92% desses impostos foram sobre rendimentos do trabalho. Já os rendimentos do capital não sofreram agravamento significativo. 
Ou seja, o governo foi, mais uma vez, forte com os fracos e fraco com os fortes. Os patos estão depenados e os coelhos parecem leitões.
Mas, se a justificação para não se tocar nos rendimentos do capital fosse a necessidade de investimento, tal argumento seria de imediato refutado pelos números, ou seja, o tal investimento, tão protegido, teve uma quebra de 28%. 
Julgo por isso que quanto a quem pagou, até ao tutano, o tal ajustamento, estamos conversados. Mas há mais.
O governo, não satisfeito com os cortes aos funcionários públicos, reformados e pensionistas, resolveu arrecadar uma receita extraordinária  através de um programa de perdão fiscal. 
Para doer mais, fê-lo no mesmo ano em que a generalidade dos portugueses cumpridores foi submetida à maior sobrecarga de IRS de sempre: 12,300 mil milhões de euros, mais 35,5% do que no esticão de 2012, e mais 3 200 milhões de euros do que no ano anterior.
Tudo isto aconteceu no ano dos SWAP e da descida dos impostos para os lucros das grandes empresas. 
Ou da manutenção das rendas das PPP`s e de sectores como o da energia mais cara de toda a Europa.
Claro que neste cenário em que se tirou muito aos pobres e pouco aos ricos, não espanta a ninguém que o saldo da administração central tenha piorado em 300 milhões, de 2012 para 2013. A administração regional piorou cerca de 600 milhões. A administração local piorou quase 800 milhões. Tudo junto, o défice aumentou cerca de 1,6 mil milhões.
O único “ajustamento” que realmente aconteceu consistiu no desvio dos nossos impostos para o serviço da dívida, deixando a descoberto os serviços públicos. 
Temos estado a pagar os juros monstruosos com que a banca se está a recapitalizar e tornámo-nos vítimas de um plano de reengenharia social que fabrica ricos à custa de pobres e remediados.
O resultado é visível em hospitais e centros de saúde, escolas, centros de emprego e empresas que foram fechando . Conduziu a uma emigração com valores recorde e à 2.ª menor taxa de natalidade do mundo. 
Hoje, o país, profundamente deprimido, não é para novos nem para velhos e arrisca-se, um dia destes, a não ser para ninguém. Nem para patos como nós. 
Só os coelhos vão ainda sobrevivendo, se calhar porque se tornaram carnívoros.

Por isso já há quem chame a isto um “ajustacídio”, para designar a morte lenta e brutal de um povo de patos à custa de tanto “ajustamento”. 
Eu, chamar-lhe-ia simplesmente um “patocídio”. 
Acho que vai dar ao mesmo e sempre é mais fácil de entender. Menos pelos coelhos, é claro. 
Tenham um bom dia e uma óptima semana a salvo da caçada.

(Crónica na rádio F - dia 27 de Janeiro de 2014)