A morte de Nelson Mandela não podia ser esquecida nesta minha crónica
semanal. Nem algumas das reações que ela despertou.
Acerca do homem que um dia afirmou que «Ser africano na África do Sul significa que se é politizado desde a
nascença, quer se queira ou não», têm sido ditos tamanhos disparates nos
últimos dias que só me apetece dizer que a hipocrisia parece ser a única arma
de uma certa canalha.
Sim, comecemos por lembrar que Mandela permaneceu até 2008 integrado na lista das
personalidades consideradas terroristas pelo Departamento de Estado dos Estados
Unidos da América.
E que em 1987, quando o mundo pressionava a África do Sul para libertar Mandela,
Portugal foi o único de três países que votaram contra uma resolução da
Assembleia Geral das Nações Unidas que clamava pela sua libertação
incondicional. Os outros dois foram os Estados Unidos de Ronald Reagan e o
Reino Unido de Margaret Thatcher. Tudo boa gente.
Era, à data, primeiro-ministro de
Portugal o mesmíssimo Cavaco Silva que hoje se comove com as "verdadeiras
lições de humanidade" do homem que, por pressão internacional, saiu de 28
anos de cativeiro sem a ajuda de quem hoje tanto se atrela à celebração do seu
legado.
O mesmo Cavaco Silva cujo governo instruiu, em 1989, numa outra votação
das Nações Unidas sobre as crianças vítimas do apartheid, os diplomatas
portugueses para, mais uma vez, votarem contra.
Cavaco, que, recorde-se, é um ex-pretendente a funcionário da PIDE, nunca
pertenceu ao grupo daqueles que na década de 60 e 70 protestavam e enfrentavam
a polícia. Nem se deu ao trabalho de algum dia exigir a libertação de alguém
que tinha sido condenado por lutar pelos direitos de um povo. Cavaco pertence
claramente a um outro grupo de gente.
Pertence mais ao grupo dos Passos Coelhos. Sim. Do Passos Coelho que na
mensagem de condolências enviada por ocasião da morte de Mandela o designou
como líder da resistência não-violenta contra o apartheid, pretendendo realçar
o alegado carácter não-violento da sua luta.
Ora, não só isto é totalmente falso - Mandela defendeu efetivamente a
luta armada e até acabou condenado por terrorismo - como denota ignorância, ou,
na pior das hipóteses, vontade de mudar pateticamente a História com o intuito
de demonizar, tout court, a violência.
A vida de Mandela demostra que contra a absoluta tirania de certos regimes
a violência é não só necessária, como até desejável e legítima. E não há coisa
que assuste mais homens como Cavaco Silva e Passos Coelho do que uma eventual
violência com tais características morais.
Mandela lutou quando teve de lutar, perdoou quando teve de perdoar. Fez o
que era certo, quase sempre. Coisa que nunca aconteceu nem acontecerá jamais
com Cavaco, Passos Coelho, ou gente da mesma laia.
Homens
como Cavaco e Passos Coelho têm todo o direito de serem hipócritas e de se
servirem da diplomacia para jogar pelo seguro. Escusam é de, no dia em que os
heróis se finam, tecer panegíricos sobre a coragem de quem nunca mereceu a sua
solidariedade quando ela era precisa.
Por isso
dediquemo-nos, não a lamentar a morte, mas a celebrar a vida de Mandela. E tudo
aquilo que ela representa e de que por aqui temos tão pouco: coragem, dignidade,
estrutura moral, coerência e total entrega à causa da liberdade, da justiça e
do progresso social.
Em alturas
destas, em que não há vergonha nenhuma, recordo-me das sábias palavras de
Miguel Torga, homem que sabia bem como são curtas as distâncias que separam a
resignação da hipocrisia: «Ser homem no
meio de carneiros, ter lógica no meio de sofismas». Assim mesmo, a zurzir.
Ou da voz
do povo, que afirma que às vezes se procura parecer melhor do que se é, outras
vezes procura-se parecer pior. Hipocrisia por hipocrisia, eu prefiro claramente
a segunda. Pelo menos consolo-me.
Tenham,
dentro do possível, uma boa semana!
(crónica na Rádio F, no dia 9 de Dezembro de 2013)