Perante o pânico que se instalou em Portugal na sequência da apresentação
da proposta de Orçamento de Estado para o próximo ano, dou comigo a pensar
frequentemente nas causas próximas e distantes do ponto a que chegámos.
Há momentos em que atribuo as culpas apenas e exclusivamente à natureza
humana; somos assim, sempre fomos e seremos assim e isto não tem solução.
Depressa abandono essa tese.
Outras vezes a culpa é de um qualquer gene lusitano que nos faz
diferentes e inferiores aos demais.
Também aqui me vejo desmentido pelos nossos 800 anos de história.
Quando leio jornais ou assisto a telejornais, aí não há dúvidas: a culpa
é do Passos, do Gaspar e do Relvas; também essa resposta não me satisfaz.
Meditando mais profundamente na questão, sou obrigado a concluir que a
causa mais longínqua da crise que atravessamos é um profundo e grave deficit cultural das nossas elites
políticas. É aí que reside o núcleo de um ciclo vicioso que nos trouxe até este
estado de coisas.
Quando vemos o espectáculo que os nossos políticos de topo vão dando,
somos obrigados a concluir que pouco ou nada devem ter lido, pouco ou nada
sabem de História, de sociologia, de política ou de literatura. É gente
partidocrata ou simplesmente tecnocrata que não conhece exemplos do passado e
não faz a mínima ideia de como se projectar no futuro.
Sem concentrar esta crónica no exemplo do ministro Relvas, não posso
deixar de o apontar como um símbolo deste deficit
que nos assola: é um self made man,
empírico e essencialmente prático que, estudando bem a realidade que o rodeia,
tem usado toda a esperteza com que a divina providência o dotou para singrar na
vida. Privilegia a forma em detrimento do conteúdo, como meio para atingir fins
que só ele conhece.
A seu lado, no governo, nas reuniões do conselho de ministros, nas
conferências de imprensa, nos comícios, sentam-se impávidas e serenas
personagens como Paulo Macedo, Paulo Portas, Francisco José Viegas, Miguel
Macedo, Pedro Aguiar-Branco e outros que vão fingindo que não reparam que, ali
ao lado, reina um habilidoso que comprou um título académico à custa da
frequência diária da sede do partido.
As consequências do deficit
cultural das elites políticas não são propriamente românticas; elas
reflectem-se na forma como as decisões são tomadas, na forma como o povo -
destinatário final da actividade dos políticos – é tratado, na forma como as
novas elites são formadas e na criação de um ciclo vicioso que, a cada medíocre
faz suceder um medíocre, a cada chico-esperto um chico-esperto, a cada Vara um
Relvas.
Pergunto-me (perguntamo-nos todos): como é possível que um país que criou
um Pessoa, um Camões, um Padre António Vieira um Egas Moniz ou um Saramago, que
integra um Lobo Antunes, um António Damásio ou um Eduardo Lourenço pode ter
simultaneamente parido um Passos, um Relvas ou um Sócrates e ter-lhes dado a
oportunidade de gerir os destinos do país?
É aqui que o conhecimento da História faz alguma falta.
Gente desta sempre existiu e sempre existirá. Desde a Idade Média que a
nossa História está carregada de oportunistas e arrivistas que, num momento ou
outro, chegaram a ter as rédeas do poder. O que essa gente nunca aprendeu e
nunca aprenderá é que o próprio curso da História se encarrega, ciclicamente,
de proceder à respectiva depuração, como uma higiene indispensável à saúde e
sobrevivência de qualquer ser vivo.
Desde a Roma antiga, passando pela democracia grega, pela revolução
francesa ou, mais recentemente por exemplos como o da revolução soviética, da
queda do muro, do fim da nossa monarquia em 5 de Outubro de 1910 ou do próprio
25 de Abril de 74, a História ensina-nos que a mediocridade cultural da elites
acaba sempre por dar origem a um sobressalto civilizacional e a causa próxima é
sempre a mesma: o desprezo dessas elites pelo povo.
Enquanto discutimos a constitucionalidade das opções definidas no Orçamento
de Estado, a reforma do Estado do senhor Passos, a táctica política do senhor
Seguro ou a remodelação do governo, o povo passa fome, sente-se pisado e
desprezado e aquela gente vai-se comportando como Maria Antonieta pouco tempo
antes de pôr o pescoço no cepo.
E um povo que finalmente percebe que está a ser governado por analfabetos
de gravata e água-de-colónia, que nos corredores do poder vai decidindo que se
pode viver com menos de 10 euros por dia, é um povo que, mais cedo ou mais
tarde vai fazer História.
(Artigo publicado no jornal "O Interior" a 8 de Novembro de 2012)