sexta-feira, junho 20, 2014

Ponto de vista

O 10 de Junho comemorado aqui na Guarda deu nas vistas, mas não apenas pelas razões que todos julgam. Com efeito, o colapso vagal de Cavaco Silva não foi a única coisa que aconteceu.
Uma notícia do jornal Público, emitida pouco antes das 11h do próprio dia 10 de Junho, informou que os seguranças de Cavaco Silva impediram qualquer aproximação e mandaram mesmo apagar as fotografias a alguns fotógrafos que estavam mais perto do local onde o Presidente foi assistido. Ainda de acordo com a mesma notícia, alguns minutos depois, ainda Cavaco Silva estava a receber assistência, os seguranças obrigaram todos os jornalistas, que inicialmente se encontravam do lado direito da tribuna principal – e por isso mais perto do Presidente – a deslocar-se para o lado mais afastado, situado para lá de duas tribunas de convidados, por ser um espaço sem qualquer acesso visual à zona.
Os jornalistas e fotógrafos só foram autorizados a regressar ao local que lhes havia sido inicialmente destinado quando o chefe de Estado já tinha recomeçado o discurso.
Conseguiu-se entretanto saber-se quem tinha sido o repórter a quem foi pedido para apagar uma foto. É um repórter de imagem que trabalha para um semanário local. Esse repórter relatou como dois seguranças de Cavaco Silva o obrigaram a apagar uma fotografia que efetuara, “porque não queriam que houvesse registo”, disseram. O jornalista confessou que a fotografia não tinha qualidade para fazer uma capa de jornal e que por essa razão a apagou sem resistir.
Este relato foi confirmado por outras fontes no local, que se referiram a uma voz de comando bem audível que ordenou aos jornalistas que apagassem as fotografias. Ficou-se também a saber mais tarde que foi também na altura ativado um inibidor de telemóveis.
Ora, num estado de direito democrático é impensável que uma autoridade exija a quem quer que seja, e por maioria de razão a jornalistas e a fotógrafos profissionais, que apaguem uma foto ou que se afastem de um local público onde acontece uma notícia, a não ser em caso de perigo para si mesmos, situação que não se colocou. Aliás, a legislação em vigor prevê até uma pena de prisão até 1 ano a quem apreender ou danificar quaisquer materiais necessários ao exercício da actividade jornalística ou impedir a entrada ou permanência em locais públicos para fins de cobertura informativa, pena que é agravada para até 2 anos no caso de o infrator ser agente ou funcionário do Estado.
A presidência da República, perante este autêntico colapso da democracia, limitou-se a “não confirmar” a situação de bloqueio à informação que foi presenciada por várias pessoas.
Estes tiques censórios, à base da inibição de telemóveis, apagamento ilegal de fotos e deslocação forçada de jornalistas, são próprios de quem viveu o Estado Novo e agora tem saudades. A classe política que nas últimas décadas conduziu o país ao desastre, de que Cavaco Silva é afinal um dos principais expoentes, convive mal com realidades que não controla. Os jornalistas servem sobretudo para propaganda e para notícias que convenham. Quando por qualquer razão ameaçam ser incómodos, passam a ser uma praga que convém fumigar. Se a circunstância o propiciar, como parece ter sido o caso por as pessoas estarem sobretudo centradas ao colapso do presidente, vêm imediatamente ao de cima os fantasmas da democratura, que é aquela coisa criada para convencer os otários de que vivemos em democracia profunda e que as instituições são verdadeiramente transparentes, isentas e promotoras da verdade.

A saudade é a memória do coração. Por isso cada um tem aquela que pode, com colapsos ou sem eles. Eu, face ao que se passou, confesso que apesar de ter coração já não tenho saudade nenhuma da passagem de Cavaco pela cidade. Vá-se lá saber porquê. 
Tenham um muito bom dia.

(Crónica na rádio F - 16 de Junho 2014)