Já por diversas vezes, aqui nestas crónicas, temos abordado os temas da corrupção, da falta de transparência nos actos públicos, do nepotismo e dos casos de compadrio. Mas fico com a sensação que os vários poderes continuam a testar a capacidade dos portugueses de libertarem um grito de revolta de tanta podridão que assola salões, palácios, ministérios e demais casas de pouca ou nenhuma reputação ou vergonha.
Muitos portugueses continuam alegremente a assobiar para o lado, a fingir que nada se passa.
Recordo Miguel Torga "que povo este! fazem-lhe tudo, tiram-lhe tudo, negam-lhe tudo, e continua a ajoelhar-se quando passa a procissão..." fim de citação.
Procissões de mercadejadores corruptos em andores que o povo carrega dolorosamente. E os ditos representantes do povo mentem descaradamente querendo fazer dos portugueses acéfalos, quando escondem a todo o custo, com a mestria própria de salafrários e bem falantes, as explicações que devem aos cidadãos que lhes pagam a vida boa e o futuro repleto de boas venturas a eles e a toda a raça.
Uns pantomineiros que nos causam as maiores das humilhações, capazes de todo o negócio fraudulento e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo. «É um direito que serve a política e não a política que serve o direito». Ou seja, uma justiça ao arbítrio da política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas. Só que o vinho não presta é feito a martelo. Mas vende-se, e é disso que os mercadejadores gostam.
O povo ajoelha.
Lembrar, aos mais incautos, que a Assembleia da República, em Agosto de 2019, aprovava a Entidade para a Transparência. Estamos em Fevereiro de 2023 e ainda não entrou em funções. Recordar que essa Entidade tem como objetivo registar, controlar e avaliar quer o registo do património quer rendimentos da elite política e detentores de altos cargos públicos. Uma entidade criada no papel há quase 4 anos e ainda não começou a funcionar. Um escândalo que deveria envergonhar toda a classe política. Mas os casos do mercadejar sucedem-se.
Vem tudo a propósito de um programa aprovado pela enésima vez por um conselho de ministros. Falamos do Programa de Estabilização Económica e Social. Mais uma vez um conjunto de intenções alinhavadas para enganar o povo. Dizem os autores que o programa tem como objectivo relançar a economia portuguesa. Relançar? O que se esquecem de dizer é que serão os mesmos de sempre a beneficiarem com mais este programa.
O que mais impressiona nesse dito programa não é a estabilização económica, pois todos conhecemos a amargura dos dias que correm para a maioria dos portugueses. O tal relançamento de que falam é mais uma vez um acto administrativo para legalizar a corrupção.
Isso mesmo.
Expliquemos o que diz a páginas tantas o tal programa de relançamento da economia portuguesa. Quando um concurso público fica deserto o governo, as autarquias, os organismos públicos podem adjudicar a quem quiserem e ao preço que quiserem um qualquer produto ou serviço.
Pensem no que isto pode gerar num país tão corrupto como Portugal.
Para que se perceba melhor ao que chega este mercadejar vamos a um exemplo prático. Imaginem que o governo, uma autarquia ou qualquer organismo público tem necessidade de comprar resmas de papel. Lança um concurso público para aquisição das mesmas. E fixa como preço de cada resma 1 euro. Ora nenhuma empresa vai querer concorrer pois seria, em termos de mercado, um verdadeiro suicídio. Desta forma, o concurso ficou deserto. A jogada da trafulhice está feita. Não aparecendo nenhuma empresa a concurso procura-se uma empresa de um amigalhaço ou da família da elite política, que vende a resma de papel a 20 euros. De imediato, e de forma legal, é o mercadejar com a empresa arranjada desta forma Tudo dentro da maior legalidade. É a dita lei feita à forma e medida de corruptos e corruptores. Assim se perdem milhões e o contribuinte que pague.
E já se sabe quem vai lucrar com o mercadejar.
E assim, serenamente, sem injustiça e sem cólera abrem-se as portas do que poderíamos chamar do progresso da decadência.
Denunciamos e continuaremos a denunciar porque não queremos ser cúmplices com a indiferença.
Tenham uma boa semana.