quarta-feira, novembro 30, 2022

Ponto de vista

O escritor queniano Kenneth Binyavanga Wainaina escreveu, em 2005, um texto que reputo de magnífico, intitulado 'Como escrever sobre a África', o qual, dada a sua pertinência e actualidade, invoco aqui e agora. 
Escrevia Wainaina que “As hienas não merecem respeito algum e falam inglês com sotaques que soam vagamente a nativos do Médio Oriente.”
Mais actual do que isto seria difícil. 
Não, não vou falar-vos do campeonato dos pontapés nas canelas, o tal que encheu os bolsos a muito boa gente por aí bem colocada, até porque a FIFA já nos habituou a tantos escândalos financeiros ligados à corrupção que já nem vale a pena perdermos muito tempo com o assunto. Nem tão pouco irei falar-vos dos passeios que hipocritamente os nossos grandes líderes apelidaram de apoio à selecção nacional para se deslocarem ao Qatar a expensas dos contribuintes portugueses.
Mais uma vez e voltando ao texto de Wainaina, «o que parece uma hiena costuma ser uma hiena». 
Por isso, vamos antes falar de um assunto que está a levar ao rubro as hienas aqui pelo nosso distrito. 
Falo, como é óbvio, da entrega do Hotel Turismo a um grupo hoteleiro - o grupo Pestana, finalmente, ao fim de 12 anos daquela decisão tomada numa descentralizada Assembleia Municipal realizada no Marmeleiro. Recordo que na época foi decidido vender-se o Hotel ao Turismo de Portugal por 3,5 milhões de euros. Tudo feito na altura com o apoio do Primeiro-ministro Sócrates, para limpar as contas da câmara e, desta forma, poder esta entrar no programa de recuperação financeira. 
Curiosamente e passados 12 anos, é o líder da actual concelhia do PS que vem anunciar que o Hotel Turismo vai ser afinal uma Pousada de Portugal. Isto depois de, uma semana antes, a secretária de Estado do Turismo, Rita Marques, ter anunciado que um contrato de arrendamento já tinha sido aprovado pelo Turismo de Portugal, proprietário do edifício. 
Ironia do destino. 
O PS decidiu há 12 anos vender a jóia da autarquia e uma referência estratégica da região, e o mesmo PS assume agora a entrega dessa jóia a um grupo privado. E isto no preciso momento em que os Censos 2021 confirmam aquilo que todos já sabíamos. O Distrito da Guarda perdeu cerca de 18 mil habitantes na última década.
É caso para se dar os parabéns a todos os poderes, desde os nacionais aos locais, em nome da célebre «coesão territorial» que até teve direito a lugar de ministra! 
A novela do Hotel Turismo ajuda a perceber muito melhor o porquê de o interior ser o paradigma do tempo perdido e das oportunidades falhadas, e um local de onde só apetece fugir.
Após o anúncio da entrega do Hotel Turismo por parte do deputado do PS na Assembleia da República e presidente da concelhia, Monteirinho, logo o actual presidente da Câmara da Guarda veio mostrar desagrado por ter sido relegado para segundo plano. Segundo Sérgio Costa, o dossier do Hotel Turismo ainda não está completamente encerrado porque havia uma promessa de um anúncio conjunto da autarquia com o Governo no desfecho final de todo o processo. 
Ou seja, Sérgio Costa quer ficar na fotografia! 
Para ele, mais do que o conteúdo, o que conta é mesmo a forma.
Socorro-me novamente do texto de Wainaina na parte em que afirmava que, e cito, «os animais, por outro lado, devem ser tratados como personagens completos e complexos. Eles falam (ou grunhem enquanto jogam suas crinas com orgulho) e têm nomes, ambições e desejos. Eles também têm valores familiares: veja-se como os leões ensinam os seus filhos. Os elefantes são carinhosos e são boas feministas ou patriarcas dignos. Assim são os gorilas. Nunca, jamais diga algo negativo sobre um elefante ou um gorila. Os elefantes podem atacar a propriedade das pessoas, destruir as suas colheitas e até mesmo matá-los. Apoie os elefantes. Já os grandes felinos têm sotaque de escola pública.» Fim de citação.
Wainaina era daqueles que estabelecia uma diferença entre a palavra “Povo”, significando africanos que não são negros, e 'O Povo', significando africanos negros. 
É caso para se dizer que para cada contexto, o seu escritor, e para cada escritor, a sua forma de dizer as coisas. 
Eu, pessoa bem mais simples e menos elaborada e inteligente que Wainaina, regulo-me por outras bitolas mais humildes. Olhando para toda esta novela do Hotel Turismo e para a falta de vergonha de muitos dos seus protagonistas ao longo dos anos, e para muitas outras novelas do mesmo género que hão de ter ajudado à perda dos tais 18 mil em dez anos, não consigo esquecer um amigo meu que costuma dizer algo parecido com ser este o país dos tugas, uma terra onde mercenários, políticos, novos-ricos, malvados, rameiras, guerrilheiros, expatriados e todo o tipo de salafrários habitam e fazem geralmente uma vida boa. 
Claro que com a recuperação do Hotel Turismo vamos voltar ao paraíso e não se pensa mais nisso. 
Tenham uma boa semana.