sexta-feira, junho 17, 2022

Ponto de vista

Passado o dia de Portugal com discursos de exaltação à arraia-miúda e ao que se quer fazer crer a importância da mesma na construção de Portugal eis-nos de volta ao país real, sem no entremeio não surjam os santos populares, os futebóis e as decisões judiciais que nos fazem acreditar que vivemos num país de salafrários. Cada vez mais me convenço que a mentira passou de subterfúgio para esconder a triste e paupérrima realidade de um povo, a tal arraia-miúda, para se transformar num forma de gozar com a iletracia dos portugueses. Vem tudo a propósito de um primeiro ministro de Portugal ter vindo falar da necessidade de aumentar o peso dos salários no PIB e exortar as empresas a que fizessem um esforço coletivo nesse sentido. Pôs mesmo uma meta: até 2026, aumentar o salário médio em 20%. Até 2006, próximo das eleições, pois então. Percebido! Só encontro uma forma para comentar o argumento do primeiro ministro. Recorro-me de uma expressão latina Ignotum per ignotius que como se sabe significa “o desconhecido pelo mais desconhecido”. Costa goza descaradamente com os portugueses. Ainda não há muitas semanas o mesmíssimo Costa dizia que aumentar os salários aos funcionários públicos em mais de 0,9% era alimentar uma espiral inflacionista. Agora esconde a espiral. Quem entende? Até parece que só os aumentos dos funcionários públicos é que causam inflação. Os aumentos dos salários no sector privado não. Se pensarmos com cuidado, percebemos que é precisamente o oposto. O perigo de os aumentos salariais alimentarem a inflação tem a ver com o facto de o empregador poder aumentar os preços transferindo o aumento de custos para o cliente. Esse perigo é muito maior no sector privado do que no público. Outro gozo está na forma como Costa acha que vai conseguir chegar à meta dos 20%. Diz António Costa que o peso dos salários no PIB é de 45% e quer que suba para 48%. Para tal ser possível é necessário que os salários aumentem mais do que o PIB. De acordo com as previsões da Comissão Europeia, o PIB português deverá crescer, em termos nominais, 8,8%. Na verdade, como a inflação prevista tem estado sempre a ser revista em alta, o provável é mesmo que o PIB nominal aumente ainda mais. Note-se que o PIB representa o valor de todos os bens e serviços produzidos num ano, pelo que pode aumentar porque cresceu a produção e/ou porque os preços subiram; já quando falamos do PIB real, estamos a abstrair-nos dos efeitos inflacionistas. Se as empresas seguirem o exemplo do Governo e aumentarem os salários em 1%, o que vai acontecer é que o peso dos salários no PIB, em vez de subir de 45% para 48%, desce para 42%. Ou seja, se as empresas, em vez de fazerem o que António Costa diz, fizerem o que ele faz, o peso dos salários, em vez de aumentar três pontos percentuais, cairá em igual montante. Mas há mais gozo nas palavras de Costa. Se Costa se refere a aumentos reais dos salários, isso quer dizer que os salários têm de subir bastante acima da inflação. Evidente senhor Costa! Admita, só para simplificar as contas, que a inflação em 2022 é de 7%, depois cai para 5% em 2023, 3% em 2024 e 2% em 2025 e 2026. Para que haja um aumento real de 20% dos salários, estes terão de crescer 4 pontos percentuais acima da inflação todos os anos. Só este ano teriam de subir quase 11%. Mais uma habilidade ilusionista de Costa. E o coelho na cartola aí está. O objetivo de aumentar os salários em 20% surge na mesma altura em que o Governo anuncia experiências-piloto para testar a semana dos quatro dias de trabalho. O Governo acena com menos um dia de trabalho por semana, ou seja, uma redução de 20% da carga de trabalho semanal, ao mesmo tempo que fixa como meta 20% de aumento salarial. Andam os economistas a discutir se será possível reduzir a semana de trabalho sem baixar salários e o Governo não só acha possível não baixar salários como até acha que dá para os aumentar em 20%. Se fizer as contas, verá que, para aumentar o salário em 20% ao mesmo tempo que reduz o horário noutros 20%, o salário por hora terá de aumentar 50%. O que acham? Mente ou não mente? Claro que sim e descaradamente. O discurso de Costa é, e usando de novo uma frase latina, Vox nihili que significa a voz de nada”. Costa como ilusionista sabe que nada é mais perigoso para a sua arte do que os enganados perceberem o engodo. Sabendo que os baixos salários e a pobreza relativa em relação aos países menos ricos da União Europeia, são perigosos para o seu número no circo de vida escolheu dizer que temos de aumentar os salários em 20% e aumentar o seu peso no PIB. Mas não se pense que a arte de bem enganar os portugueses é obra de Costa. Nada disso. Na prática é uma versão mais esperta do famoso cálculo do défice que o Banco de Portugal aceitou fazer a pedido do governo de Sócrates: com esse cálculo de um défice fictício, que Sócrates assumiu como referência, Sócrates conseguiu aumentar o défice, dizendo sempre que o estava a baixar e os portugueses foram atrás dessa pantominice. Daqui para a frente, ao longo da legislatura, passaremos o tempo a usar os 20% como referência, em termos nominais obviamente, como se fosse um objectivo do governo e não uma mera decorrência do tempo, nas circunstâncias económicas que é previsível que venhamos a ter. Como é habitual em António Costa, o que ele fez foi formatar a discussão para não fazer nada e para que pareça um feito digno de figurar nos Lusíadas. E arraia-miúda irá outra vez atrás dessa pantominice.
Tenham uma boa semana.