Todos sabemos como o dia do cortejo da Queima
das fitas, em Coimbra, é dado a excessos. Só quem não estudou naquela cidade ou
tenha esquecido a tendência natural da juventude para a irreverência e para –
por vezes – o disparate, pode não compreender o contexto daqueles momentos.
Mas desta vez a coisa deu-se porque os alunos
do curso de História da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
resolveram dar ao seu carro o nome de “Alcoholocausto”. Isso mesmo, uma mistura
de “álcool” e de “holocausto”. A intenção era a de que esse carro, o tal “Alcoholocausto”,
fosse a réplica de um daqueles comboios de transporte de gado que os nazis
utilizaram para levar os judeus e outros perseguidos para serem gaseados nos
campos de concentração.
Recordo que já em outubro, no denominado
Cortejo da Festa das Latas, que integra a recepção aos caloiros, os «doutores» haviam
desafiado esses caloiros a vestirem-se de nazis e de judeus. E recordo também
que foi muito recentemente que na Faculdade de Direito de Lisboa foi colocada
uma caixa com pedras para serem arremessadas aos estudantes brasileiros que
conseguiam entrar para o mestrado. Tudo isto extravasa a simples irreverência
estudantil e as habituais parvoíces que trespassaram, também, a nossa própria
juventude. Mas a coisa, infelizmente, é bem mais grave do que isto.
As faculdades, nomeadamente a Faculdade de
Direito de Lisboa, e o 25 de Abril, foram durante muito tempo duas realidades
dificilmente conjugáveis. Isto acontecia porque à data do 25 de Abril poucos professores
eram abertamente oposicionistas, devido aos saneamentos e purgas promovidos
pela ditadura. A Faculdade de Direito de Lisboa era conhecida por ser um local
onde se acoitavam fascistas encartados, alguns deles envergonhados, a que se somavam
muitos falsos democratas. Poucos anos volvidos, talvez uns dez, a referida
faculdade estava novamente nas mãos daqueles que tinham saído pela porta
pequena no 25 de Abril, com excepção dos que tinham atingido a idade da
reforma. Depois, bem…depois, foi evoluindo na continuidade. E é esta herança
fascista, mitigada, maquilhada por uma superficial cosmética democrática, sem
uma verdadeira ruptura com o passado salazarista-marcelista, que em última instância
explica a afronta à nossa democracia, praticada nas vésperas do 25 de Abril,
traduzida no convite a Sérgio Moro, Ministro da Justiça do Brasil e do governo
de Bolsonaro, o tal que mandou celebrar a ditadura brasileira, desprezando as
torturas e homicídios então cometidos.
Se isto já era grave por parte de uma
instituição pública à qual cabe a tarefa de ensinar e de defender os nobres
princípios da Constituição portuguesa, que dizer de um Governo que permite ou
que fica inactivo perante a presença de um membro seu nessa acção de propaganda
jurídica contra-revolucionária promovida numa instituição pública portuguesa
por um elemento da extrema-direita estrangeira? Sérgio Moro não falou na
Faculdade de Direito de Lisboa como Ministro do Brasil mas como propagandista
de um novo credo jurídico que já colhe defensores entre nós e que visa alterar
profundamente as regras da convivência democrática em que temos vivido desde o
25 de Abril. O ministro português não pode ficar impune, mesmo que no seu
errado pensar a sua presença tenha sido ditada por uma questão de cortesia
diplomática. Uma coisa é receber o Ministro da Justiça do Brasil no Ministério
dos Negócios Estrangeiros no quadro das relações diplomáticas entre dois
Estados soberanos. Outra, completamente diferente, é chancelar com a sua
presença uma acção de extrema-direita, promovida por um estrangeiro, para
captar, em solo português, apoiantes para uma doutrina retrógrada
representativa de um perigoso retrocesso civilizacional. E tudo isto na mesma
altura em que Bolsonaro apelidava de nazis os socialistas! Haja vergonha!
Tenham uma boa semana.
(Crónica Rádio F - 6 de Maio 2019)