quinta-feira, maio 02, 2019

Ponto de vista


A semana que findou foi marcada pelas comemorações do 25 de Abril de 1974. Não vou falar dos cravos na lapela de alguns que conviveriam perfeitamente com um regime do tipo daquele que o 25 de Abril derrubou, caso este lhes concedesse os privilégios e prebendas a que se julgam com direito. Falo do 25 de Abril como processo em contínua transformação, infelizmente a caminho de uma ruela da má fama.
José Saramago disse um dia que do 25 de Abril nada restava, e que aquilo a que denominamos de democracia não é uma herança direta da revolução. A sucessão dos acontecimentos nos últimos 45 anos apenas confirma essa crença de Saramago. Olhe-se para o estado caótico dos serviços públicos, como é o caso, só para referenciar alguns, da saúde, educação e justiça. Veja-se o peso da máquina fiscal que, ao mesmo tempo que persegue a classe média, contemporiza com os intocáveis e com os offshores aonde se acoitam. Atente-se na corrupção e na corruptela, vícios que por aí campeiam sem solução que se vislumbre, e que estão na origem da vigarologia em que se transformou o resgate dos erros dos ricos na banca à custa dos impostos de todos nós. Por último, reflitamos na endogamia estrutural do governo, com pais, filhos, esposas, noras e enteados a mais fazerem aquilo parecer um clã daqueles que infestavam o senado romano e que ajudaram à queda do respetivo império.
Este é o país para que foi feito o 25 de Abril? Saramago, numa das comemorações da revolução, manifestou há muito anos a sua convicção de que se a Revolução dos Cravos não tivesse sido feita, Portugal estaria igual ao que é hoje. “O 25 de Abril acabou. É história. É uma promessa que não se realizou”. E acrescentou: “Não quer dizer que não o devêssemos ter feito. Apenas que não soubemos, não pudemos ou não nos deixaram mantê-lo”. O nosso prémio Nobel disse o que pensava. Essa é afinal a verdadeira e única conquista do 25 de Abril que ainda se pode comemorar – o direito a pensar!
Recordo na circunstância aquele poema de Jorge de Sena, escrito ainda antes da queda do regime, mais concretamente em 10 de Outubro de 1973:
No País dos Sacanas
Que adianta dizer-se que é um país de sacanas?
Todos os são, mesmo os melhores, às suas horas,
e todos estão contentes de se saberem sacanas.
Não há mesmo melhor do que uma sacanice
para poder funcionar fraternalmente
a humidade de próstata ou das glândulas lacrimais,
para além das rivalidades, invejas e mesquinharias
em que tanto se dividem e afinal se irmanam.
Dizer-se que é de heróis e santos o país,
a ver se se convencem e puxam para cima as calças?
Para quê, se toda a gente sabe que só asnos,
ingénuos e sacaneados é que foram disso?
Não, o melhor seria aguentar, fazendo que se ignora.
Mas claro que logo todos pensam que isto é o cúmulo da sacanice,
porque no país dos sacanas, ninguém pode entender
que a nobreza, a dignidade, a independência, a
justiça, a bondade, etc., etc., sejam
outra coisa que não patifaria de sacanas refinados
a um ponto que os mais não são capazes de atingir.
No país dos sacanas, ser sacana e meio?
Não, que toda a gente já é e pelo menos dois.
Como ser-se então nesse país? Não ser-se?
Ser ou não ser, eis a questão, dir-se-ia.
Mas isso foi no teatro, e o gajo morreu na mesma.
O poema que acabei de ler chama-se mesmo «No país dos sacanas». É que há verdades que têm de ser ditas com todas as letras.
Tenham uma boa semana.

(Crónica na Rádio F - 29 de Abril de 2019)