Depois de mais um foguetório eleitoral, chegou a hora de regressarmos
à realidade. Vou apenas referir aqui alguns números e situações. Porque é
preciso.
A dívida pública não cessa de aumentar, chegando já aos 127% do PIB.
O défice orçamental, que não deveria, de acordo com as exigências da troika, ultrapassar os 4% em 2014, atingiu,
nos seis primeiros meses do ano, 7,1% do PIB.
O Eurostat calculou existirem no país, durante o mês de julho, 878 mil
desempregados, sem sequer tomar em conta os números trágicos da emigração
forçada.
A proteção no desemprego chega agora apenas a 44% das pessoas sem
trabalho.
O valor médio das prestações de desemprego foi, no final de agosto, de
cerca de 481 euros, à custa de uma redução de 4% em relação ao mesmo período do
ano passado.
O número de beneficiários do RSI voltou a cair em agosto,
existindo agora menos 30 mil pessoas a receber esta prestação do que no mesmo
mês de 2012.
Perto de 1 500 crianças e jovens perderam o direito ao abono de
família entre julho e agosto.
2 412 beneficiários do subsídio por educação especial, destinado a
crianças e jovens com deficiência, perderam esta prestação social no mês
passado.
A desvalorização salarial dos trabalhadores que foram ou que vão ser atingidos
pelo aumento não remunerado do número de horas semanais de trabalho, de 35 para
40, alcança, na prática, um valor de 14%.
A mais recente alteração ao Código do Trabalho, em 30 de agosto,
resultou numa intrincada teia de fórmulas que dificulta ao trabalhador perceber
quanto receberá se for abrangido por um processo de despedimento colectivo, por
um despedimento qualquer que se invente, ou simplesmente se vir caducar o seu
contrato a termo.
E por aí fora. Poderia encher páginas e páginas com números destes. Em
vão. É que tudo isto tem sido invocado em nome da necessidade. Sim, isso mesmo.
A necessidade. E quando a necessidade é muita, até descobrimos que a
Constituição atrapalha. Atrapalha tanto que um dia destes nem há-de ser necessária
para nada!
Claro que esta necessidade, sendo para mim um mal maior que tudo o
resto, só me suscita o pensamento de que não havia necessidade nenhuma de
vivermos dela.
Bem sei que o Fernando Pessoa, no Livro do Desassossego, falava em “reduzir
as necessidades ao mínimo, para que em nada dependamos de outrem”. E, se
repararmos bem, até era capaz de ter alguma razão. É que há por aí gente que
necessita como nunca. Necessitam de salários mais baixos. De pensões cada vez
mais exíguas. De cada vez mais precariedade. De lucros cada vez maiores.
Necessitam do medo, desde que esse medo seja dos outros. E do poder, desde que
seja só deles. Necessitam, até sem precisarem. E tanto necessitam de tudo, como
de coisa nenhuma.
É claro que Pessoa falava sobretudo das necessidades de que não
precisamos. E de cada um reduzir as suas. Voluntariamente. Nunca de elas nos
serem reduzidas, à força, por quem as tem maiores do que os outros. Mas como
quem nos governa nunca deve ter lido Pessoa, números e necessidade são apenas as
duas faces da mesma moeda. E por isso colocam a necessidade à frente de tudo. O
homem, que eu até pensava ser a medida de todas as coisas, é hoje ultrapassado
pela necessidade, que é agora a verdadeira medida de tudo. E por isso querem
fazer dela a fonte de todas as leis.
O problema é que a necessidade transforma homens honestos em velhacos.
É um obstáculo indestrutível que estilhaça tudo o que se lance sobre ela.
Conduz as pessoas ao engano. E é a mãe de todos os vícios. Por isso mesmo,
Santo Agostinho concluiu que a necessidade não tem lei. E eu acrescento que se tivesse,
haveria de ser daquelas que proíbe tanto
os ricos como os pobres de dormir sob as pontes, de mendigar nas ruas ou de
roubar pão. E mais não digo. Porque nem há necessidade…
Jorge Noutel
(Crónica publicada no jornal "O Interior" - 09/10/2013)