Terminada a romaria à
senhora do Coito, eis-nos de novo de volta à realidade. E é exactamente por
isso, pela realidade, que chamo a atenção dos ouvintes para dois epifenómenos
das recentes eleições autárquicas.
O primeiro consistiu no
surgimento, nunca antes visto, de tantas candidaturas ditas independentes. É
certo que muitas delas foram mais “dissidentes” do que “independentes”. Mas
ainda assim, surgindo em grande número, representaram uma clara ameaça aos
partidos. Das verdadeiramente independentes, genuínas, assentes na pura
cidadania, apenas direi que acredito no potencial que representam.
Os dois tipos de
candidaturas obrigaram, pela 1.ª vez, o sistema a reagir a sério. O facto de
algumas terem sido, um pouco por todo o país, derrotadas na secretaria, só
serviu para realçar a novidade e a intensidade do fenómeno. Da próxima vez,
corrigidos os erros que liquidaram à nascença tantas dessas iniciativas, os
partidos terão muito mais a perder.
O segundo epifenómeno
consistiu na elevada percentagem de votos nulos e brancos, que quase duplicou
em relação aos valores de referência.
A par da abstenção,
este segundo fenómeno consolidou-se como um bem identificado “voto de
protesto”. Para piorar as coisas, votaram apenas cerca de 45% dos eleitores,
reduzindo a níveis nunca vistos a legitimidade democrática dos eleitos. De
facto, se somarem tudo isto, as candidaturas independentes, os votos brancos e
nulos, e a própria abstenção, é verdadeiramente o sistema que hoje está em
causa.
Esta foi a forma de um
povo cansado e desesperado invocar a sua descrença num sistema que é
profundamente imoral, desprovido de qualquer ética ou coerência argumentativa,
e corrupto até às entranhas.
Eu, hoje ainda mais céptico do que a maioria dos outros descrentes, sou dos que acreditam que muitos dos votos
expressos até só foram parar aos partidos porque no caso em apreço o cidadão
eleitor nem sequer dispunha de uma alternativa local credível. Existisse ao seu
alcance uma opção de cidadania, creio que a razia ao nível da votação nos
partidos, sobretudo nos partidos do poder, teria sido ainda maior.
Escusam de vir com o
argumento dos “fantasmas” nos cadernos eleitorais. Aliás, porque não se
procede, de uma vez por todas, a uma depuração e actualização dos ditos
cadernos? Veríamos, no fim, que a tendência de descredibilização dos partidos
se manteria, tal como existe.
O que está afinal em
causa é a própria democracia. De facto, os partidos, sobretudo os do poder,
convenceram a s pessoas, nos últimos 37 anos, de que a democracia se exerce
através do voto. Esqueceram-se de ensinar aos seus militantes, mas sobretudo
aos seus dirigentes, que a verdadeira democracia só sobrevive se for escrutinada
no quotidiano.
O governo, carrancudo, passa
a vida a dizer-nos que “temos de mudar de vida”. Curiosamente, eu, nesta
matéria, até concordo com o governo. Temos mesmo de mudar de vida. E seria bom,
para começar, que despachássemos os partidos que nos têm governado. Sim, porque
a culpa das nossas dores não há-de ser dos outros. E muito menos dos cidadãos.
A culpa é de partidos
que não conseguem compreender que não podem fazer tudo aquilo que querem.
Partidos que não tomam em consideração o facto de terem um apoio minoritário do
universo geral dos eleitores. Que deveriam, só por isso, modular as suas próprias
opções de governação. E que não entendem que a democracia “à martelada”, eivada
de arrogância e de falta de transparência, causadora de tanta infelicidade, atingiu
hoje um ridículo que não pode, ainda assim, deixar de fazer rir mesmo quem
tenha apenas razões para chorar.
Se queremos salvar o
que resta, teremos de passar de uma “partidocracia” para uma “cidadanocracia”. Algo
em que o riso seja uma coisa mais natural, até para o poder. Algo em que os
governantes recordem Erasmo, o tal que um dia afirmou, sorrindo, que "Rir
de tudo é próprio de parvos, mas não rir de nada é simplesmente de estúpido.
Tenham um bom dia!