Hoje, para desenjoar, vou contar uma história da carochinha, simbólica do provincianismo saloio em que vivemos.
Mas
antes impõe-se uma instrutiva introdução:
O nepotismo, do latim nepos (neto ou descendente), era, na origem, a autoridade que os sobrinhos de certos papas exerciam na administração dos negócios, durante o pontificado de seus tios.
Por extensão passou a ser o abuso, cometido por altos funcionários, da própria influência, para dar honras e bons lugares aos seus parentes.
Um grande nepotista foi Napoleão Bonaparte.
Em 1809, três de seus irmãos eram reis de países ocupados pelo seu exército.
Na nossa história, um dos exemplos mais controversos é o da carta de apresentação supostamente feita pelo escrivão Pero Vaz de Caminha ao Rei D. Manuel I, a propósito do descobrimento do Brasil. No último parágrafo da carta, Caminha apelou a D. Manuel para que libertasse do cárcere o seu genro, casado com a sua filha Isabel, preso por assalto e agressão.
Eis uma forma despudorada de se pedir, ao mesmo tempo, a soltura e um emprego para o genro!
Há vícios que não desaparecem, embora os tempos tenham mudado.
Hoje já não se pede. Simplesmente, faz-se!
Se for caso
disso, é o próprio rei quem dá a si mesmo aquilo que deseja!!
Embora a verdadeira natureza dos “genros” não tenha mudado assim tanto…
Aqui há uns tempos foi largamente badalada a história de um administrador hospitalar requisitado pela esposa, do
hospital onde trabalhava para aquele que ela gere agora.
Claro que à senhora pouco importou o facto de a Lei proibir expressamente tal intervenção em causa própria. Bastou-lhe justificar a pouca vergonha do ato com o estafado argumento do “interesse público”.
Posteriormente essa esposa-rainha tentou nomear o marido para o lugar de fiscal da contabilidade da instituição em causa.
Ficava tudo em família, na maior das transparências e seriedades!
Claro que a coisa deu para o torto, já que isto das intimidades nem sempre é como no tempo de D. Manuel.
Há agora por aí uma coisa chamada imprensa, há deputados e subsiste ainda alguma pudicícia coletiva.
O “genro” da rainha do Portugal moderno, mesmo tendo conseguido sair de S. Tomé e obtido o desejado empregozito no Brasil dos nossos dias, derribou-se ingloriamente na pretensão de um tachito mais à medida das suas ambiciosas competências.
Ficámos depois no suspense de ver o que aconteceria à dita esposa-rainha: recompensa ou castigo?
Na inexplicável falta de adequados desenvolvimentos, olhemos ao menos, expectantes, para as competências do tal “genro”.
O “assalto e agressão” iniciais, protagonizados pelo tal “genro”, alcançaram um dia cerca de 26 mil euros (cerca de 5 200
contos à época), à custa de pagamentos ilegais autoatribuídos, relativos a despesas de deslocação e a ajudas de custo enquanto gestor hospitalar.
Entretanto atravessou-se, com muita sorte à mistura para o parente em questão, uma daquelas
prescrições decorridos 5 anos após o seu recebimento» (o DL n.º 155/92), a que se somou a amnistia de 1999 (a
Lei n.º 29/99).
A condenação final ficou-se assim pela devolução ao Estado, por ordem do Tribunal de Contas, datada de 2005, da módica quantia de 3 740 euros.
Pelo meio ocorreu o desaparecimento (que coincidência…) de documentos de despesa originais relativos a despesas de abonos de ajudas de custo ou subsídio de viagem pagos ao tal “genro”, personagem que afinal era o esposo da rainha de hoje.
De entre os documentos que desapareceram misteriosamente destacava-se a despesa com o pagamento de uma viagem a Hannover (Alemanha), efetuada pelo dito cujo em 1993, num total de 330 mil escudos (cerca de 1650 euros), certamente bem aplicados ao serviço do hospital onde o mesmo trabalhava (!).
A tutela chegou mesmo a concluir que os autos indiciam (o “genro”, ou, melhor dito, o venturoso conjugue de hoje) como o autor do desaparecimento de tais documentos (…) tornando impossível a deteção de eventuais duplicações de custos para o hospital e vantagem para o próprio beneficiário.
Ainda assim a tutela conseguiu determinar que houve duplicação em pelo menos um mês.
Contudo, nunca foi aplicada ao tal “genro” nenhuma pena, por força da Lei da Amnistia.
O próprio Ministério Público
entendeu não avançar com uma acção devido ao desaparecimento dos tais documentos de despesa…
Esse “genro”, está visto, tinha assim todas as credenciais para poder fiscalizar diligente e competentemente a
contabilidade do hospital empresa agora dirigido pela esposa.
Esposa essa que a seu tempo ainda fez bem pior do que ele, assunto que fica no entanto para uma próxima crónica…
Quanto ao “genro”, não tendo lamentavelmente podido obter tudo aquilo que queria, foi recentemente nomeado pela tal esposa-rainha para uma comissão que, por sua vez, vai acompanhar a despesa final e a conclusão das obras de um novo hospital!
Viva a pouca vergonha!
É que a vergonha não é apenas aquela coisa que convém termos, só para depois podermos perdê-la.
É também algo cujo
tormento é, para certa gente, tão agudo que a simples vaidade não serve para a suportar.
Logo, para viver com tamanho dilema é necessária coragem, muita coragem.
E gentinha desta, que olha para a coragem apenas como uma espécie de
caminho que conduz às estrelas, limita-se a pensar, à velha maneira talmúdica, que ter de perder a vergonha será sempre bem pior do que perder o dinheiro.
Por isso, mais vale nem a ter…
(artigo publicado no jornal "O Interior" no dia 9 de Maio de 2012)