O processo político consagrado pelas últimas eleições, alavancado para o efeito em duas imagens de marca, representou a consumação de um sonho.
Por um lado, a ideia de que ou havia acordo com a troika ou o mundo acabava. Ideia peregrina, apadrinhada naturalmente pela direita, que visava legitimar no imaginário nacional tudo aquilo que está para vir. Mas também ideia redentora, porque permitia a Sócrates descartar responsabilidades e afirmar que o acordo com a troika era a consequência natural de uma crise política causada pelas oposições a um governo sem mácula. Tivessem essas oposições permitido que o país deslizasse serenamente para mais uma dúzia e meia de PECs, até um infinito inalcançável, e a troika nunca entraria em Portugal…
No meio não houve espaço para mais nada. A renegociação da dívida, diabolizada a torto e à direita, foi associada ao calote. Sobretudo por Sócrates, a quem qualquer solução do meio retiraria espaço de manobra para a indução do medo e para a apresentação da sua factura política “aos outros”. Passos Coelho, que até chegou a reconhecer timidamente essa possibilidade, «mas só depois de tudo falhar», nunca quis explicar porque razão seria moral amanhã o que hoje abjurava.
O próprio presidente da República deu para o peditório, ao pretender, pasme-se, que seria possível compatibilizar a troika com «justiça social, crescimento da economia e combate ao desemprego»!
A segunda imagem de marca consiste no facto de, tendo-se falado tanto no famigerado acordo troikista, a generalidade dos portugueses continuar a desconhecer o seu conteúdo. Apenas pressentem que vêm aí tempos ainda mais difíceis, estado de espírito para o qual, infelizmente, nem sequer é necessária uma particular dotação política ou económica. Basta a natureza fatalista do nosso povo, avessa ao reconhecimento de que um conformista não passa de um escravo voluntário.
Para que foi tudo isto? Eu digo-vos: Sócrates foi o actor principal num filme destinado a desviar a atenção das pessoas do papel que elas próprias irão desempenhar na Bollywood terceiro mundista em que vivemos. A trama da fita consiste em tornar os ricos cada vez mais ricos e os pobres apenas tão pobres quanto o necessário para não causarem problemas incontroláveis a quem se governa.
Um pouco à imagem da fantasmagoria dos enredos cinematográficos com sabor a paranormal, o segredo da coisa reside em fazer crer ao povo que até foi ele o culpado de tudo! E nisso foi bem sucedido Passos Coelho, qual ajudante circense que escorou Sócrates na aprovação a granel de orçamentos e PECs, mas só enquanto conveio. Assentou que nem uma luva o argumento de que a pobretana tem vivido acima das suas possibilidades. Sobre a ricaça, claro, nem uma palavra…
A dolorosa ironia de tudo isto, filha de uma realidade que escapou a tanta gente, assenta no facto de ter sido a direita quem, pela mão de um sistema financeiro corrupto, mafioso e ladrão, lançou a Europa na vertigem da recessão e do sofrimento humano. A patética ironia, coisa algo distinta, deriva apenas da gratificação servilmente concedida aos autores de tais malfeitorias por um sistema político cuja face foi José Sócrates, o tal que a história enojará um dia.
De facto, foi a esquerda quem perdeu as eleições. Não a direita que esteve na origem do imbróglio em que estamos metidos. Como se viu, com a ajuda de um PS que tudo fez para se colocar a jeito, durante anos a fio, julgando ser carne e peixe ao mesmo tempo.
Aonde nos conduzirá tudo isto? A um mundo em que cada vez mais a política será a arte de tirar aos pobres para dar aos ricos, sem que os primeiros disso se dêem demasiada conta e que os segundos algum dia se satisfaçam? A uma espécie de floresta de Nottingham ao contrário, em que o desespero do povo será tal que acabam preferindo o xerife do castelo a qualquer Robin dos Bosques que por aí apareça?
Está por agora consumado o sonho de “uma maioria, um governo, um presidente”, o oposto do pesadelo desta gente que aconteceria se todas as verdades fossem conhecidas. Obrigado PS, clama em uníssono uma direita que pode finalmente empanturrar-se de poder e roubalheira. No fundo, daquilo que o PS sempre quis fazer, mas sem maneiras e de forma parola. Desta vez a coisa será feita com circunspecção e cerimónia que baste.
A tragédia portuguesa, subtilmente diferente da grega, é que na verdade o nosso destino seria o mesmo se o PS tivesse tido, por absurdo, a “sua” maioria absoluta. Ou o CDS. Ou qualquer outro.
De facto Portugal é e vai ser governado por uma ditadura económica. O poder está lá fora. Passos Coelho, Portas ou qualquer outro que aterrasse no circo não passam de palhaços de ocasião, condenados a obedecer. Só lhes resta ficarem contentes pelos 15 minutos de fama, conscientes de que são tão descartáveis como Sócrates. Esta submissão total do poder político ao poder económico é o toque de finados da democracia. Da genuína, que a outra continuará a ser invocada para o que convir.
A submissão dos ricos de cá aos ricos de fora é outra história e encarna apenas o tempero que transforma a tragédia de todos na comédia de alguns. E está visto que de comédias agora ninguém quer ouvir falar. É que faz parte da natureza da evidência passar despercebida…
Artigo publicado no jornal O Interior, em 9 de Junho de2011