domingo, março 18, 2007

Venham mais quatro!


Transcrevemos, na íntegra, um excelente artigo publicado no Ambio [link] que pela sua pertinência e actualidade merece a maior divulgação e, acima de tudo, uma reflexão e debate na sociedade.

Esperemos que venha a acontecer.

Aqui fica o documento e as respectivas justificações.


«Pela primeira vez desde que foi promulgada a desastrosa Lei dos Alvarás de Loteamento de 1965, uma bancada parlamentar propôs a retenção pública das mais-valias urbanísticas.
Para recuperar um atraso legislativo de quatro décadas, já só faltam quatro bancadas!
O combate à corrupção tem sido uma causa que motiva um entusiasmo consensual - pelo menos em teoria. Na prática, os seus inconvenientes parecem ser tantos que as iniciativas mais acutilantes nesse sentido são cedo rechaçadas, como vimos recentemente suceder com a criação da figura criminal do "enriquecimento ilícito" proposta pelo socialista João Cravinho.
Decerto que na categoria de "enriquecimento ilícito" mereceriam ser tidas em conta certas formas de "enriquecimento sem causa" muito frequentes no urbanismo português, onde um proprietário vê o valor do seu terreno ser multiplicado por meros alvarás de loteamento, arrebatando sem qualquer mérito económico chorudas mais-valias imerecidas, neste caso urbanísticas.
O loteador enriquece à custa do empobrecimento do erário público, muitas vezes graças à cumplicidade dos decisores políticos, como foi claramente denunciado pelo social-democrata Paulo Morais.
O clima de suspeição é de tal forma generalizado que, justa ou injustamente, tem levado a investigação judicial a investigar actos urbanísticos ministeriais envolvendo o ambiente e o ordenamento do território, como demonstraram os casos de Benavente e de Nova Setúbal.
Instituições como a Ordem dos Arquitectos já se manifestaram publicamente a favor da revisão das leis que nos trouxeram a este estado.
As mais-valias urbanísticas equivalem ao acréscimo de valor sofrido por um terreno quando uma decisão político-administrativa aumenta o seu potencial de edificação.
Os alvarás valem fortunas, como se tornou claro pelos recentes casos do Cabo Raso (1.350.000 € por hectare), Marvila (duplicação do valor inicial), Gondomar (quadruplicação do valor inicial) e tantos outros.
E quão desmoralizador é para os portugueses perceber que o método mais expedito de gerar uma fortuna não é aumentar a produtividade, mas sim sacar um favor político-administrativo...
É por este motivo que as políticas urbanísticas de todos os países desenvolvidos definem como uma das suas prioridades máximas garantir a retenção pública destas mais-valias, como atesta o direito comparado.
Nuns países, esta retenção é efectuado por via de taxas draconianas; noutros, por interdição dos loteamentos privados.
Estão em causa não somente a qualidade do urbanismo no sentido físico do termo, mas também e sobretudo o princípio constitucional da igualdade dos cidadãos perante a Administração Pública.
Desde David Ricardo e Stuart Mill que este preceito de economia política está nas bases da legislação urbanística ocidental.
De facto, que justiça, que racionalidade económica podem existir num acto administrativo que descricionariamente enriquece uns cidadãos em detrimento dos outros, sem que os primeiros dêem qualquer contrapartida proporcional aos segundos? Ninguém explanou mais eloquentemente estas ideias do que Winston Churchill.
Em Portugal, é triste dizê-lo, o tema parece ser tabu nos paços municipais e nos passos perdidos de São Bento.
Apesar de todos os seus resultados: a corrupção urbanística ainda por tipificar, o caos territorial, a desigualdade social, a ineficiência económica.
Apesar de todos os estudos, relatórios e diagnósticos publicados por investigadores nacionais e estrangeiros.
Dir-se-ia que o láudano das fortunas fáceis oferecidas pelos alvarás tem entorpecido o discernimento dos legisladores.
Lembra os alvarás petrolíferos da Nigéria: maná para uns poucos cidadãos, fel para os demais.
Não estamos inteiramente sós no Ocidente.
Os nossos vizinhos ibéricos, apesar de terem eregido em princípio constitucional a posse pública das mais-valias urbanísticas, estão a ter dificuldade em controlar a sua corrupção que ajuda os privados a capturá-las?
Que dizer de nós outros, portugueses, cuja legislação apenas trata das mais valias urbanísticas nos seguintes termos:"Os mecanismos de perequação compensatória a prever nos instrumentos de gestão territorial vinculativos dos particulares deverão ter em consideração os seguintes objectivos: a) Redistribuição das mais-valias atribuídas pelo plano aos proprietários" (artigo 137º do DL 380/99)Que dizer deste articulado, quando o comparamos com a denúncia que a Transparency International faz do caso menos flagrante da legislação espanhola? Como se justifica o silêncio dos políticos portugueses, depois de se terem passado mais de quatro décadas desde a privatização das mais-valias urbanísticas?Esse silêncio no hemiciclo foi quebrado nesta semana pelo Bloco de Esquerda.
Qualquer pessoa que aprecie a discussão democrática, independentemente das suas inclinações ideológicas, deverá reconhecer que foi cumprida uma importantes funções de um partido minoritário: lançar a debate temas incómodos a que a maioria se procura furtar.
Neste caso, furtava-se há décadas.
Sucede que o problema em questão ultrapassa em muito as tradicionais clivagens esquerda/direita e autoritarismo/liberalismo. Todos os partidos têm de propor uma solução para este gravíssimo problema. Nenhuma doutrina política moderna, seja ela socialista ou capitalista, consegue justificar que Portugal mantenha uma política de solos mais própria de uma cleptocracia terceiromundista do que de um país ocidental do século XXI.Venham mais quatro propostas: das bancadas da CDU, do PS, do PSD, do CDS. Que não se confine à esquerda o debate que deveria alargar-se a todo o espectro.
Guardar silêncio é ser cúmplice do assassinato das nossas paisagens, da nossa qualidade de vida, da nossa economia, da nossa justiça.»
O que está em causa é o fim da promiscuidade entre poder político e interesses económicos?
Percebem ou talvez não?