terça-feira, fevereiro 13, 2007

Abril em Fevereiro…

Na madrugada de 11 para 12 de Fevereiro, no rescaldo da vitória do SIM, perguntava-me uma jovem, via Internet: “Foi assim que viveste o 25 de Abril”? Ultrapassado o efeito surpresa da pergunta, lá respondi que a situação era muito diferente, não havia propriamente uma guerra nem uma revolução, etc.… E, depois de alguns “argumentos racionais”, concluí: “Sim, o que tu estás a sentir deve ser muito parecido com o que a minha geração viveu no 25 de Abril”. Manuel Damásio explicará melhor as conexões entre razão e emoção mas, para boa parte dos “filhos da revolução”, nascidos a partir da segunda metade da década de 70, este 11 de Fevereiro foi “o seu 25 de Abril”. E, convenhamos, para muitos “kotas” como eu, este é uma espécie de “segundo 25 de Abril” – pelo menos no sentido da entrada de Portugal na modernidade do século XXI.

A vitória política do SIM no referendo é inquestionável. Valeu a pena a paciência democrática de oito anos de espera pela “segunda volta” do referendo de 1998. E não foi fácil, exigiu muito esforço e perseverança. Recordo o movimento cívico que, em 2004, apresentou à Assembleia da República uma petição com mais de 125 mil assinaturas por um novo referendo, ignorada por uma maioria em que pontificavam Durão Barroso, Paulo Portas, Marques Mendes e Bagão Félix. Eles tinham todas as razões para temer o referendo, como agora ficou demonstrado. E, se não atingimos ainda os 50% de participação que o tornariam formalmente vinculativo, a abstenção recuou 12 pontos e o quase “empate técnico” de 1998 deu lugar a uma vantagem de mais de 18% para o SIM!

O parlamento tem inquestionável legitimidade política para legislar no cumprimento da vontade expressa do eleitorado: “a despenalização da IVG, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado”. E não é despiciendo que esta legitimidade tenha sido confirmada nas urnas. Ao ouvir alguns assanhados partidários do NÃO, na noite da derrota, pressentia-se a saudade dos “velhos tempos” de Salazar, quando a abstenção foi contabilizada como um voto a favor da Constituição de 1933… Felizmente não são essas as regras da democracia, cujos riscos valem sempre a pena e cujos custos só podem ser contabilizados como benefícios. É que se o parlamento alterasse a lei sem novo referendo, não faltariam os cortejos e as romarias por esse país fora. Assim, ficam as lamentações…

É verdade, no que toca à reparação das injustiças contra as mulheres e no apoio à maternidade, consciente, que há muito por fazer. Mas, a partir de agora, abrem-se novos horizontes, a começar por uma lei justa que quebre o isolamento da mulher no momento da sua decisão mais difícil e almeje a redução drástica do aborto clandestino. Um novo impulso ao planeamento familiar só pode começar por uma educação sexual informada e desinibida nas escolas – a clandestinidade e o sentimento de culpa são sempre os piores conselheiros, nesta como noutras áreas.

A vitória do SIM tem ainda outro significado profundo: a afirmação dos valores da República e do Estado laico, o princípio da separação das Igrejas do Estado que é vital para a própria liberdade de todos os cultos e da propaganda religiosa ou anti-religiosa. Isto é, o Estado democrático não pode nem deve conformar-se ou acolher uma particular concepção ético-religiosa e dar-lhe força de lei, como acontecia até hoje com a questão do aborto em Portugal. E é justo salientar o contributo de muitos católicos nesta decisão histórica do povo português, ao recusarem o condicionamento da sua consciência por uma hierarquia retrógrada: além das ameaças de excomunhão de alguns bispos, o próprio Papa – SS Ratzinger – chegou ao desplante de equiparar aborto e terrorismo. Só por pudor ou alguns telhados de vidro não terá falado no Holocausto, como o Bispo de Bragança em 1998…

Saúdo as vozes corajosas de leigos e membros do clero em defesa do SIM, da tolerância e da dignidade das mulheres, tratadas como cidadãs de segunda classe pela hierarquia – quando é que acabará a expiação do “pecado original”? Não é assunto que me toque particularmente, mas alarga-se o conflito entre uma Igreja que opte por calçar “as sandálias do pescador” e a sua hierarquia, comodamente instalada no trono de Roma – o mesmo que lançava o povo cristão ás feras!

Alberto Matos – Crónica semanal na Rádio Pax – 13/02/2007