quinta-feira, junho 06, 2024

Ponto de vista

Em semana de se cumprir com a agenda das consciências que determina em muitos países, incluindo Portugal, que se celebre o Dia da Criança, não podíamos não devíamos esquecer a angústia delas.
A liturgia da celebração do Dia da Criança vai, como é hábito, variando e procurando fazer esquecer vivências dolorosas. As visitas, os passeios, as festas, a oferta de espectáculos de todas as naturezas mostrará uma comunidade preocupada em fazer as crianças felizes.
Muitas estão e parecem divertir-se, ainda bem. Algumas outras terão de passar por um dia cansativo.
A imprensa fará eco dos múltiplos eventos dirigidos às crianças, ouvirá por uma vez as crianças e produzir-se-ão, certamente, muitos discursos dirigidos aos mais novos e ao seu mundo. Claro, neste dia, ouvi-las sobre o que pensam do mundo, do seu mundo e da vida das pessoas, é "interessante". É verdade que passa depressa, amanhã já não as ouvimos sobre o que as inquieta e lá voltam as crianças, muitas, a gritar e a agitar-se para se fazerem ouvir.
Tudo bem, pois que seja, este tipo de efemérides serve também para isso mesmo, a encenação, sempre bem-intencionada, da preocupação que descansa as consciências.
É verdade, felizmente, que muitas crianças vivem felizes, por assim dizer, adoptadas pelos pais, acolhidas pela escola e pela comunidade, são o futuro a crescer. É bom que assim seja.
No entanto, e nestas alturas, lembro-me com frequência do Mestre Almada Negreiros que na Cena do Ódio falava sobre, "a Pátria onde Camões morreu de fome e onde todos enchem a barriga de Camões".
De facto, apesar da vaga de discursos e iniciativas em nome das crianças, muitas passam mal, muito mal, todos sabemos. Não cabem no Dia da Criança.
Não cabem as que diariamente são vítimas de crimes e maus-tratos.
Não cabem muitas das que vivem numa instituição esperando por uma família que nunca virá.
Não cabem as que, por várias razões, são alvo de discriminação e a quem são negados direitos básicos.
Não cabem as que vivem em famílias que as não desejam e mal as suportam.
Não cabem as que a pobreza ameaça as suas necessidades básicas.
Não cabem as que vivem em famílias que sobrevivem envergonhadamente na pobreza que nos deveria envergonhar a todos nós.
Não cabem as que a escola não consegue ajudar a construir um futuro a que valha a pena aceder e sofrem políticas educativas nem sempre suficientemente amigáveis para os todas as crianças.
Não cabem as que sofrem de solidão e isolamento sem que se perceba como não estão bem.
Na verdade, estas crianças que acabei de citar, por vezes, parece que não existem, são transparentes, nem as vemos.
Por isso, comemora-se o Dia da Criança com a convicção ingénua ou voluntarista de que, como dizia Pessoa, "o melhor do mundo são as crianças" e que elas são felizes, todas.
O que, obviamente, não corresponde à realidade, mas os poetas... são uns fingidores.
E sabem o que é mais inquietante? Esta crónica não prescreve. E, desde logo, não prescreve dado que é a própria Ministra da Justiça referiu a existência de uma lista de espera para o cumprimento de medidas de internamento em Centros Educativos de jovens, com idades entre os 12 e os 16 anos, que cometeram actos que a lei qualifica como crimes. Considerando a idade ficam sujeitos à lei tutelar educativa com o objectivo de reeducação e inserção na comunidade. Para além da insuficiência dos equipamentos, verifica-se uma significativa falta de recursos humanos, designadamente, técnicos de reinserção social, de um corpo docente interdisciplinar que possibilite a verdadeira reintegração dos jovens apanhados no turbilhão de uma sociedade que cava o fosso entre ricos e pobres.
Entretanto, os jovens mantêm-se nas instituições de acolhimento ou nas famílias com o risco acrescido da reincidência.
Cerca de 31% dos jovens voltam a ser condenados.
A violência entre grupos de jovens aumentou 15% em 2023, o valor mais elevado desde 2014.
Também a delinquência juvenil, crimes praticados por jovens entre os 12 e os 16 anos, registou um crescimento de 9%, o valor mais alto desde 2017.
Apesar de a punição e a detenção constituírem um importante sinal de combate à sensação de impunidade instalada, é minha forte convicção de que só punir e prender não basta.
É neste caldo de cultura que em muitos contextos familiares vulneráveis nascem e se desenvolvem as sementes de mal-estar que geram os episódios que regularmente nos assustam e inquietam e com consequências sérias.
Em 2023 houve um aumento de 19% dos crimes ligados ao tráfico e consumo de estupefacientes, face ao ano anterior.
E que futuro para estas crianças após atingirem os 16 anos e já não terem lugar, devido à idade, nos Centros de Acolhimento? As ruas ficam cheias de jovens chamados “jovens Nem-Nem”, jovens que não estudam, não trabalham e nem frequentam qualquer formação. Já são quase 11% dos jovens portugueses. Na sua esmagadora maioria, são jovens profundamente marcados por situações de exclusão social e vulnerabilidade económica.
Deixados para trás.
Dia da criança!
Que criança?
Tenham uma excelente semana.