A luz, a cegueira, a prepotência e a estupidez
A literatura tem diversos papéis. Entre eles, o da fascinante capacidade de criar situações extremas para forçar o leitor a refletir sobre a realidade que o cerca. É exatamente por isso, devido a esta vocação para provocar reflexão, que a literatura é mais que entretenimento. E, nesse ponto, José Saramago foi um autor que soube usar deste artifício com mestria. Em “Ensaio sobre a cegueira” (1995), Saramago criou uma situação aparentemente absurda: de repente, todas as pessoas ficam cegas - uma cegueira branca que mergulha a sociedade no caos. Apenas uma única personagem continua a enxergar normalmente, e com isso passa a acompanhar a degradação moral e a desconstrução da sociedade que conhecia, e até de si mesma, como pessoa. A ficção de Saramago retratava a condição do ser humano sob a óptica duma sociedade autoritária, em que a opinião e a vergonha do outro já não interessam mais. Os valores e costumes mudaram, o indivíduo agora é outro, e tudo isso precisa de ser assimilado para que uma nova sociedade possa surgir. Um a um, todos os que tiveram contacto com o primeiro cego vão cegar também. Diante da possível epidemia, o governo decide trancar todos os cegos e os que tiveram contacto com estes num manicómio desactivado.
Vem tudo isto a propósito de um acontecimento por si só revelador da cegueira que invade os poderes instalados neste nosso Portugal. Falo-vos do Hospital Sousa Martins! Não, não venho falar de mais uma demissão da directora clínica das Urgências, a tal que já se demitiu do mesmo cargo não sei quantas vezes em tempos idos. Arrufos e lutas intestinas dentro do partido socialista, todos as conhecemos, mas aqueles de entre nós que não foram nem serão afectados pela tal cegueira branca dificilmente se deixarão iludir por cenas de “polichinelo”. E por isso, ainda menos por uma cegueira branca que decorre, não da submersão nas trevas, mas sim do excesso de luz que alimenta os egos.
O caso é fácil de relatar e mais fácil ainda de entender, caso o leitor não esteja cego. Imagine-se funcionário da Unidade de Saúde Local da Guarda. Imagine-se em litígio com a instituição a propósito do alegado incumprimento das suas funções e/ou do seu horário de trabalho. Imagine agora que, nesse contexto, alguém teve o despudor de recolher os registos referentes às entradas e saídas do veículo automóvel desse funcionário do parque de estacionamento da instituição (cada trabalhador que deseje utilizar este parque de estacionamento paga uma mensalidade para o efeito e quem conduzir o seu veículo, que pode até ser um colega ou o mecânico, movimenta a cancela de entrada e de saída com o cartão de identificação pessoal fornecido pela Unidade Local de Saúde da Guarda). Imagine que para este tipo de gente que toma decisões e exerce funções de chefia, este tipo de acções é considerada normal. Percebe agora que a cegueira está mais que patente e que o manicómio está praticamente cheio? Será que esta gente não tem inteligência suficiente para perceber que a utilização dos registos horários de entrada e de saída de um determinado veículo nunca poderá servir para controlar a assiduidade de alguém? Será que há gente assim tão estúpida e prepotente?
Recordo que na obra de Saramago há uma única cidadã que não é atingida pela tal cegueira branca, a mulher do médico. E será através dos olhos da mulher do médico que podemos ver o caos em que o mundo se transformou. Lojas saqueadas, casas invadidas, sujeira por todo o lado, pilhas de corpos depositadas nos lugares mais abjetos. A sociedade sucumbiu, e, talvez, não exista mais como foi um dia. Mas, de repente, quando todos pareciam ter-se conformado com a situação, eis que o primeiro cego grita, de susto, afirmando que está cego. De repente fica tudo escuro, para em seguida voltar a ver! E, um a um, todos passaram a afirmar que conseguiam enxergar. A cegueira tinha passado, e foi embora de forma tão súbita como chegou. Porém, para a mulher do médico, eles nunca teriam deixado de ver, apenas não enxergavam a verdade. Esta foi a crítica de Saramago ao individualismo exagerado, tão cultivado na sociedade actual. A situação extrema vivida pelos personagens desperta no leitor a reflexão de que não é possível a existência do indivíduo sem a presença do “outro”, pois é esse “outro” que irá refletir quem somos. A obra faz ponderar, assim, sobre a posição do indivíduo na sociedade, enquanto passa a questionar a estrutura desta mesma sociedade. Apenas nunca foi lida por muita gente que ocupa cargos de chefia na ULS da Guarda…
(Crónica Jornal O Interior - 5 de Fevereiro de 2024)