Em 1737, há quase trezentos anos, o escritor português António José da Silva, mais conhecido por o Judeu, levava à cena, em pleno Bairro Alto, em Lisboa, a célebre peça as “Guerras de Alecrim e Manjerona”, uma sátira exemplar à sociedade portuguesa setecentista.
A peça, para quem conhece a obra, é uma comédia de enganos. Na dupla intriga amorosa há fidalgos galantes mas sem ética, aristocratas avarentos, exageros barrocos, críticas à justiça, à medicina e às rivalidades entre grupos carnavalescos. A rivalidade entre dois ranchos carnavalescos é o primeiro plano da intriga amorosa que se desenrola numa sucessão de peripécias e trocadilhos hilariantes. De recordar que o autor da obra foi barbaramente torturado e executado pela Inquisição.
Lembrei-me da obra de António José da Silva a propósito dos argumentos que se vão esgrimindo em praça pública sobre as hipotéticas obras no hospital da Guarda.
Em plena crise pandémica, com o hospital da Guarda a entrar em ruptura, com doentes a morrer às dezenas, eis que não há mais nada para discutir do que as obras do hospital. Esquecem-se os graves problemas gerados pelos sucessivos governos que foram desinvestindo na saúde, tudo em prol do privado.
Aqui pela Guarda, mesmo às portas do tão apelidado Parque da Saúde, surge um novo equipamento que vai retirar ao hospital público não só técnicos como igualmente prestar todo o tipo de exames complementares que deviam ser realizados na Unidade Local de Saúde. Mas isso pouco ou nada importa aos políticos ou àqueles que se fazem passar por isso.
Que lhes importa que os dinheiros públicos sejam desviados do SNS, em proveito de outros projetos? Rigorosamente nada. Os próprios médicos, ou porque os exames do provado lhes parecem mais fidedignos ou por outras razões que não desejo aqui abordar, acabam a dar para este peditório!
Imagine-se, com a contínua perda de poder de compra e de negociação do próprio estado, o que será dentro de anos a carência de profissionais de saúde qualificados que já existe. É por isso que o problema da atual pandemia não se resolve com camas e mais camas para as quais não há equipamentos nem profissionais suficientes.
Não me esqueço que António Costa, candidato a primeiro- ministro, anunciou em frente à Câmara Municipal da Guarda, no dia 8 de Setembro de 2019, o descongelar da 2.ª fase das obras no Hospital da Guarda. Estivesse a referir-se ao pavilhão 5, antigas urgências, e ao chamado comboio, ou apenas a uma das obras, afirmou o seguinte: «E porque queremos que quem cá viva, no interior do país, tenha tão boas condições de vida aqui como quem vive nos grandes centros urbanos do litoral, é que nós assumimos o compromisso de descongelar a segunda fase do hospital da Guarda e arrancar com essa obra que é fundamental para o futuro desta cidade», fim de citação. Para mais à frente referir que, e passo novamente a citar: «Porque nós é aqui no interior que temos que fazer o maior esforço de infraestruturas, para ser um território ainda mais atrativo para a fixação das populações”.
Para além de não se referir, propositadamente ou não, a que obras estavam em questão, o mais importante do discurso residiu naquilo que implicitamente o senhor candidato não disse. É que até podem construir tudo que quiserem, um, dez ou cem hospitais em cada cidade. Mas sem gente para os fazer funcionar, as promessas não passam de uma mão cheia de nada! Só paredes não chegam. Importa equipar as infraestruturas de meios que lhes permitam funcionar adequadamente.
Todas as esperanças, promessas, disputas políticas que esqueçam este desiderato fundamental apenas servem as guerras de alecrim e da manjedoura, perdão, da manjerona.
Ironicamente, ou talvez não, a ministra da Coesão Territorial anunciou, no final de uma reunião com o atual Conselho de Administração da ULS, que não serão uma, nem duas as obras a executar no Hospital Sousa Martins. Serão três! Isso mesmo, três!
Prometeu que a breve prazo arrancarão obras consideradas urgentes, quer no edifício do «comboio», quer no antigo edifício da Administração Regional de Saúde, onde se encontra a sede da ULS. E também, já agora, uma empreitada no pavilhão 5. Contas feitas, serão 11 milhões de euros para remendos. Segundo a ministra, «se tudo correr bem», poderá haver obras no início de 2022.
O que quis a ministra dizer com «se tudo correr bem»? É que se não correr bem será tão mau para a Guarda como já o é, sobretudo se se continuar a esquecer os equipamentos e os profissionais.
Parece que, por enquanto, cada um ficará em paz com a sua quinta. Como dizia o Judeu na obra citada, todos têm uma quinta, entre a quarta e a sexta. Tenham uma boa semana.
(Crónica na Rádio F - 25 de Janeiro de 2021)