quarta-feira, janeiro 20, 2021

Ponto de vista

         Em tempo de agravamento dos casos de COVID em Portugal, chamou-me a atenção uma entrevista que esta semana o Presidente das Misericórdias portuguesas, Manuel Lemos, concedeu a um jornal diário. Manuel Lopes começou por atribuir à falta de investimento e de atenção o aumento dos surtos de COVID nos lares, somando-lhe a influência das doenças associadas geralmente prevalentes neste grupo etário. Sobre o facto de, conhecendo-se essa vulnerabilidade, os responsáveis dos lares não terem feito o suficiente para prevenir a entrada do vírus, já pouco falou.

O vírus já anda em Portugal há quase um ano e as respostas foram quase sempre adiadas ou atribuídas às regras que não são cumpridas pelos cidadãos. Os verdadeiros culpados enjeitaram responsabilidades e atribuem-nas aos elos mais fracos. Não devemos esquecer que muitos idosos foram mantidos enclausurados sem contacto com o exterior, criando-se uma espécie de campo de concentração onde nenhum familiar podia entrar, mas que mesmo assim acabaram por ser infetados por funcionários sem as devidas cautelas e proteções. Nalguns casos a barreira criada entre idosos e familiares foi de tal ordem que não houve o cuidado de criar espaços para a visita sempre tão necessária e urgente nestes casos. Meses e meses sem visitas sem um contacto visual. O isolamento parecia total, mas foi furado pelos funcionários que sem qualquer segurança circulavam entre os contactos sociais da rua, casa, família e outros.

Pode sempre dizer-se que a culpa é da ligeireza das medidas adoptadas no Natal ou na Passagem do Ano, mas a verdade é que a situação nos lares nunca esteve bem, mesmo em fases mais adormecidas da pandemia. O maior erro residiu na ausência de uma política de testes sistemáticos e periódicos a todos os funcionários e utentes. Só quando era detectado um foco se iniciava a testagem, e sempre com resultados muito tardios e por vezes parcelares, sem abrangerem toda a gente. Ou seja, o velho ditado popular de casa roubada, trancas à porta, aplicou-se sempre em prejuízo dos idosos.

Outro problema, de acordo com Manuel Lopes, consistiu na falta de funcionários para substituir os que iam ficando em casa contaminados. Mas e as equipas de apoio? As tão anunciadas equipas da responsabilidade de autarquias, da Segurança Social e de outras instituições? Ou não apareceram ou eram em número reduzido. Falha duplamente grave sobretudo em territórios de baixa densidade populacional, onde os potenciais funcionários substitutos há muito emigraram. O problema foi aí agravado pela deslocação de funcionários dos lares e de outras instituições para irem trabalhar, mesmo a contrato incerto, para os hospitais, melhorando com migalhas o seu vencimento. As instituições do social pagam mal, o que leva a que qualquer oportunidade de saída seja aproveitada. Já no caso dos médicos e dos enfermeiros, os lares ficaram a perder, quando se abriram vagas nos hospitais ou se fazia a requisição civil. É a consequência de se gerir os lares a pensar no lucro e no imediato, sem investir no futuro e em contextos potenciais de maiores dificuldades.

Por fim, Manuel Lopes falou dos lares ilegais. Para o presidente das Misericórdias a existência de tais lares deve-se ao Estado. O Estado não apoia suficientemente o sector social nem dá as devidas e necessárias comparticipações às pessoas. Assim, surge o recurso aos lares ilegais. Faltou a ética e o rigor de reconhecer que os lares legais, nomeadamente os das misericórdias, vivem dos investimentos que o Estado lhes oferece em infraestruturas, desde a construção até ao equipamento. E depois disso continuam a viver à custa dos valores comparticipados pelo Estado, que se somam aos valores pagos pelos utentes, tantas vezes à custa de cunhas e de quantias por baixo da mesa, única forma de conseguirem uma vaga. E que se comprometem a ter um certo número de vagas para utentes da segurança social, mas todos sabemos que nunca são cumpridas. Atribuem alas dos edifícios a comparticipados e a não comparticipados. Não têm o número de funcionários exigidos. Pagam salários de miséria, desde enfermeiros a auxiliares. E, por fim, ainda há a distinta lata de falar nos lares ilegais e nas culpas do Estado, esquecendo que o fim último de uma instituição social, subsidiada pelo Estado, não é o lucro, como vem sucedendo há anos, mas sim a participação na cobertura solidária a todos os cidadãos que dela necessitem. E que uma das obrigações, quando existe uma debilitação das estruturas assistenciais devido a subfinanciamento crónico do sistema, é falar-se quando se deve. Não quando a casa já está a vir abaixo, tentando usar as culpas do Estado para esconder as próprias. 

Tenham uma boa semana.

(Crónica Rádio F - 18 de Janeiro de 2021)