O
país assistiu recentemente, na esteira da publicação por Cavaco Silva de um
livro de memórias e da posterior reação pública de José Sócrates, a mais uma
daquelas novelas que nos permitem compreender muito do porquê da situação a que
Portugal chegou.
Cavaco
disse de Sócrates aquilo que se sabe, de que recordo em particular as
referências aos negócios com a Venezuela e com a PT. Com acusações de deslealdade
e outras pelo meio, colou a José Sócrates uma imagem muito pouco recomendável
para posterior registo histórico.
José
Sócrates respondeu na mesma moeda, falando, entre outras coisas, em
“bisbilhotice política”, “falta de sentido de estado”, “ataques políticos
traiçoeiros” e “deturpação de conversas”. Assim mesmo.
Para
o comum dos mortais ficou sobretudo uma lamentável imagem de dois políticos que
geriram o nosso destino em momentos cruciais da nossa história. De facto, é
impossível saber-se quem tem razão, ou sequer se algum deles tem razão. E mesmo
que acabássemos por concluir que algum tinha mais razão do que o outro, ou até que
a tinha toda, isso pouco importa. Fica-nos na mesma um amargo de boca, uma
espécie de sensação de vazio.
Com
toda esta polémica, a classe política desceu ainda mais baixo, quando muitos já
não acreditavam que tal fosse possível. Os portugueses estão hoje atolados em
dúvidas sobre a própria honorabilidade de José Sócrates e de Cavaco Silva,
decorrentes dos múltiplos escândalos cujas faturas nos vêm sendo sucessivamente
apresentadas, de que recordo as PPPs, o BPN, a PT, o BES, e a CGD, entre tantos
outros.
Numa
democracia madura, a prestação de contas a que se referiu Cavaco Silva teria de
respeitar duas premissas fundamentais: ser efetuada com transparência e, sobretudo,
acontecer na altura certa. Ora, não só persistem as dúvidas sobre o desempenho de
Cavaco em muitos dos dossiers a que me referi acima, dúvidas essas que o livro
não esclarece, como a revelação de conversas sem testemunhas, sobretudo nos
termos recorridos pelo ex-presidente da República, remetem claramente para um contexto
de óbvia conflituosidade política e pessoal como motivação para a mesma.
É
da praxe, até nos casamentos, que falemos na altura certa ou nos calemos para
sempre. Ao não ter falado quando devia, Cavaco demonstra não ter apreendido a
importância dos timings políticos. Quando presidente da República, ainda se
julgava no tempo em que foi primeiro-ministro. E, pelos vistos, hoje ainda se
julga um pouco presidente da República...
José
Sócrates, por seu lado, também não percebeu que os portugueses já não embarcam
em futebóis, de que é expoente máximo aquela galática piada destinada a
fazer-nos crer na generosidade milionária de um amigo desprendidamente generoso…
São
estes os personagens que arrastaram atrás de si multidões de crentes, como se
de uma simples profissão de fé se tratasse. O facto de ainda conservarem muitos
desses crentes explica muito do bloqueio a que a nossa democracia está sujeita.
Todos os sistemas políticos são modulados pelo nível de exigência dos cidadãos.
Se esse nível é baixo, se as pessoas adotam uma posição simplesmente clubística
em relação aos juízos que fazem sobre quem nos lidera, como tem tipicamente sucedido
no caso português, a qualidade do aparelho político é igualmente baixa e a
possibilidade de chegarem ao topo políticos com qualidades que mereçam um
consensual lugar na História é muito reduzida.
Quando
olho para trás, vejo sobretudo um passado de oportunidades perdidas, de
escolhas mal feitas, de colossais erros cometidos, enfim, tudo assente em
manipulação, desinformação, clubismo e hipocrisia q.b.
Já
Camões dizia que fracos reis tornam fraca a forte gente, máxima que não me
conforta quando dou por mim a pensar se essa própria “forte gente” será assim
tão forte. De facto, esta novela Cavaco contra Sócrates, ou vice-versa, é uma
espécie de sublimação daquilo que têm sido as nossas escolhas enquanto povo. No
mínimo, não augura nada de bom.
Muito bom dia a todos.