Passou um ano sobre a
vitória inequívoca e nada surpreendente de Marcelo Rebelo de Sousa nas eleições
para a presidência da República.
Para início de conversa, tenho de confessar aqui
que Marcelo não foi o meu candidato. Dito isto, pintemos o quadro de trás para a
frente.
Marcelo fez uma
campanha à americana, alicerçada na sua projeção mediática. Foi calculista e
pragmático quanto baste, o suficiente para nem sequer precisar de partidos para
zarpar e vencer. Pode dizer-se que Marcelo já tinha ganho as eleições muito
antes de estas se iniciarem sequer.
Fez um esforço
inteligente e bem-sucedido para fazer esquecer à maioria dos portugueses as
suas origens. Filho de um colaborador do regime salazarista e do próprio
Marcelo Caetano, de quem aliás era afilhado, Marcelo cresceu rodeado de pajens,
marqueses e marquesas, viscondes e viscondessas, enfim, de todo aquele séquito
que pastava na corte bolorenta e arcaica da época da ditadura. A hipocrisia,
então como agora, fazia escola. Marcelo nadou nessa onda como peixe na água.
Recordo-me desses
tempos, marcados pela caridadezinha, espelhada e retratada no Época e sempre com
o apoio do beato Movimento Nacional Feminino, o tal que vendia as
«prospridades» e os aerogramas àqueles que serviam de carne para as kalashnikov
na guerra de África.
Nessa altura ninguém
ouviu a Marcelo qualquer crítica dirigida aos que se deliciavam com o maná dos
palácios dos governadores pelas capitais do Império. Aliás, na biografia de
Marcelo, confessada ou ainda por confessar, não se vislumbra qualquer
referência ao serviço militar do atual chefe supremo das forças armadas.
Interessante! Recordo que falamos do tempo dos afilhados e, principalmente, dos
padrinhos! Padrinhos esses que alisavam o terreno e tiravam miraculosamente os
obstáculos da frente para que em tempo de mudança, fosse ela qual tivesse de
ser, tudo acontecesse pelo menos de forma natural e comedida. E sempre a
contento do que devia ser Marcelo nunca se voluntariou para essa patriótica
guerra, sabem?
O compasso do tempo e o
metrónomo marcam hoje a cadência das sucessões dinásticas e das oportunidades
sempre vistas na lógica da aspiração presidencial. Marcelo nega as evidências e
faz acreditar que o país está melhor. E quando as coisas contrariam o seu discurso
oficial, resolve os problemas com selfies. É o presidente das selfies e dos afectos.
Associa-se ao primeiro-ministro para vender
estabilidade. Mas é tudo fogo de vista! Marcelo é no fundo um catavento, como
aliás já alguém o apelidou. Esconde quanto pode os podres e não quer confusões…
Note-se que a dívida, a
partir de 2016, aumentou em mais de 14 mil milhões. Mas disso Marcelo não fala,
até porque pouco teria para nos dizer. Assim como não fala do facto de 1 em
cada 5 famílias não ter condições financeiras para fazer face às situações do
dia-a-dia. Tal como não fala, por conveniência, ou por receio, ou por qualquer
outra razão, do sentimento de revolta que cresce na sociedade. Não fala dos
hospitais que estão em situação de rutura financeira, nem confessa a realidade
cada vez mais difícil nas escolas, na justiça e em outros sectores ou serviços
fundamentais da sociedade, que muitas vezes só aparentemente funcionam.
Marcelo é inteligente
como poucos. Sabe gerir a tal coisa dos afectos como ninguém. Mas, tal como nos
casamentos, os afectos têm o seu tempo e o seu espaço. Chega sempre o momento
do confronto com as realidades que ninguém quer. E nessa altura é que se vai
ver.
Não precisamos de um
presidente que apareça todos os dias nas televisões, nos jornais, nas revistas,
enfim, em tudo o que seja mediático ou estrondoso. Talvez injustamente, essas
práticas trazem-nos à memória os presidentes omnipresentes das ditaduras, sejam
elas coloridas ou cinzentas.
Precisamos é de alguém
na presidência que chame a atenção, não só do povo, mas sobretudo dos
governantes, para os problemas, e que responsabilize sem equívocos e sem afectos
aqueles que têm a obrigação de os resolver ou, no mínimo, de não os causar. Hoje
que tanto se fala de populismos lá por fora, lembrar que cá dentro vamos tendo
um populacho que se diverte a ver o rei.
Tenham um muito bom
dia.
(Crónica Rádio F – 13 de
Março 2017)