quarta-feira, março 01, 2017

Ponto de Vista


É na faculdade de mentir, que caracteriza a maior parte dos homens actuais, que se baseia a civilização moderna. Ela firma-se, como tão claramente demonstrou Nordau, na mentira religiosa, na mentira política, na mentira económica, na mentira matrimonial, etc... A mentira formou este ser, único em todo o Universo: o homem antipático.

Actualmente, a mentira chama-se utilitarismo, ordem social, senso prático; disfarçou-se nestes nomes, julgando assim passar incógnita. A máscara deu-lhe prestígio, tornando-a misteriosa, e portanto, respeitada. De forma que a mentira, como ordem social, pode praticar impunemente todos os assassinatos; como utilitarismo, todos os roubos; como senso prático, todas as tolices e loucuras.

A mentira reina sobre o mundo! Quase todos os homens são súbditos desta omnipotente Majestade. Derrubá-la do trono, arrancar-lhe das mãos o ceptro ensaguentado, é a obra bendita que o Povo, virgem de corpo e alma, vai realizando dia a dia, sob a direcção dos grandes mestres de obras que se chamam Jesus, Buda, Pascal, Spartacus, Voltaire, Rousseau, Hugo, Zola, Tolstoi, Reclus, Bakounine, etc. etc. ... 

Estas palavras não são minhas, são de Teixeira de Pascoaes, na sua obra "A Saudade e o Saudosismo", mas enquadram na perfeição a forma como a administração da ULS da Guarda lidou com o recente caso da alegada morte de uma bebé na nossa maternidade.

Numa primeira fase essa administração convocou uma conferência de imprensa para anunciar inquéritos conduzidos por autoridades exteriores ao hospital, procurando fazer-nos acreditar numa investigação objetiva e transparente. No entanto, foi o próprio ministério da Saúde, entidade que não deixa de ser parte interessada no problema, sobretudo se houver indemnizações cíveis em causa, a envolver-se através da ARS do Centro. Por aí se começou a suspeitar das dificuldades em se chegar afinal à verdade.

Para confirmar essas suspeitas, a administração não só assumiu dificuldades em fornecer à Polícia judiciária as filmagens das câmaras de vigilância, como comunicou ao Ministério Público o desaparecimento do primeiro registo dos batimentos cardíacos da mulher que perdeu o bebé por alegada falta de assistência. Tal dificulta enormemente o apuramento da verdade e faz tombar sobre a ULS a suspeita de encobrimento. Sejam quais forem os desenvolvimentos seguintes, isto é, mesmo que alguém encontrasse o que se julga ser o registo desaparecido, todos suspeitaríamos da sua veracidade. Já ninguém acreditará nas conclusões de um qualquer inquérito que eventualmente ilibe a instituição das responsabilidades que as circunstâncias atuais aparentemente lhe atribuem.

Para esta consequência muito contribuiu o facto de o próprio diretor clínico da instituição nunca ter dado a cara em todo este processo. Simplesmente desapareceu de cena, atitude no mínimo bizarra e desconhecida em qualquer outra situação comparável de qualquer outro hospital, e no máximo de uma indescritível falta de solidariedade institucional e denunciadora da implosão funcional da liderança hospitalar.

Recordo que foi sob a tutela desta administração que alegadamente desapareceu uma ampola de hélio indispensável ao funcionamento do aparelho de ressonância magnética e que ocorreu um escândalo sobre fuga de radiações num aparelho da TAC a funcionar ilegalmente, entre muitos outros eventos e cenas que nunca deveriam ter existido.

Todos estes factos revelam a incúria e a incompetência que têm presidido aos destinos do nosso hospital, desprestigiando por tabela quem honradamente trabalha naquela instituição em prol de todos nós. As perguntas que se colocam numa altura destas são curtas e boas: quem tem medo da substituição imediata da administração do nosso hospital? Quem tem medo do apuramento de todas as consequências dos factos ocorridos? Será que, mais uma vez, a culpa vai morrer solteira?

Muito bom dia a todos.
 
(Crónica na Rádio F - 27 de Fevereiro de 2017)