quarta-feira, junho 01, 2016

Ponto de Vista


As últimas semanas trouxeram-me uma certa sensação de dejá vu, como quando vemos um determinado filme e julgamos reviver cenas de um outro.

A comissão europeia, o BCE, o presidente do eurogrupo e o ministro das finanças alemão fizeram diversos tipos de ameaças aos governos português e espanhol a propósito do incumprimento das metas do défice para o ano de 2015. É evidente a sofreguidão pela imposição de sanções ou o cancelamento de fundos comunitários como forma de reconduzir ao bom caminho as ovelhas que só dão maus exemplos ao rebanho.

Se no caso espanhol é notória a relação com a proximidade das eleições, visando ajudar o PP de Mariano Rajoy a criar um clima de medo que legitime as suas propostas eleitorais austeritárias, no caso português a conversa é outra. É evidente que se fosse a direita a governar o país, tais ameaças não existiriam. Por um lado, não seria necessário tentar demonstrar que não vale a pena acreditar na democracia e em alternativas e que o melhor é votar nos mesmos de sempre. Por outro, a direita portuguesa, sempre mais papista do que o papa e com um discurso do género “estamos aqui para ir mais longe do que a troika e por isso deixem-nos mas é ser bons alunos”, faria com que os portugueses até olhassem para os de lá de fora como os polícias bons.

O défice acima dos 3% em 2015 ficou a dever-se a causas diretamente imputáveis à direita, a Bruxelas e à Europa. De facto, todas as soluções para lidar com o problema do BANIF foram sendo recusadas até ser aceite apenas aquela que se traduziu por um generoso donativo de dinheiros públicos aos interesses de um banco privado, a saber, o Santander. E é essa mesma Europa que vem agora cinicamente postar-se como virgem ofendida e exigir mais sacrifícios. Para argumento de filme, convenhamos que não é nada original. Por isso o meu dejá vu tem apenas a qualidade que a coisa merece.

Exigem-nos agora mais 750 milhões em austeridade, o que é uma forma de obrigar os mais pobres a pagarem outra vez pelos erros dos mais ricos. E, com exceção do ministro das finanças alemão, todas as outras instituições ou pessoas que clamam contra Portugal e a Espanha não foram eleitas, o que não deixa de ser sintomático. Isto é, numa Europa cada vez menos democrática e subjugada aos interesses financeiros, são os lacaios vindos desses setores quem exerce de facto o poder político.

Isto não é um bom prenúncio para o filme que a minha memória insiste em revisitar. É que avizinham-se novos descalabros. Não foi por acaso que emergiu agora a questão dos 4 mil milhões para injetar na CGD, fazendo subir o valor total de dinheiros públicos vertidos naquele banco para a módica quantia de 7,6 mil milhões de euros.

Claro que os senhores da Europa não se perguntam para onde foram tantos milhões, como por exemplo os 11,5 mil milhões para uma fundação que nem sequer existia! A única coisa que lhes interessa é fazer os de baixo pagarem pelos crimes dos de cima. Em nome da ideologia e bons costumes.

Nesta Europa cada vez mais esquizofrénica, em que o distanciamento da realidade caminha a par da impunidade dos ricos e poderosos, a catástrofe é tão certa como a minha convicção de que os ladrões e os políticos que os apoiam nunca vão ter o castigo que merecem. Mas o povo, esse, vai. Isto é, com razão ou sem ela, o povo vai mesmo ter um castigo qualquer, quer queira, quer não.

Como toda esta miséria – seja ela económica, social, política ou moral – não passou desapercebida ao mundo civilizado, consolou-me um pouco a intervenção do realizador Ken Loach, vencedor da Palma de Ouro na 69.ª edição do Festival Internacional de Cinema de Cannes. Defendeu o cinema como forma de protesto contra um mundo em perigo pelas ideias neoliberais que implicaram uma vaga de austeridade – e cito – "que provocou a miséria de milhões de pessoas desde a Grécia a Portugal, com uma pequena minoria que enriquece de maneira vergonhosa".
Uma vez que é de cinema e dejá vu que falamos, afinal nem todos os filmes têm de acabar mal. Pelo menos ao nível dos argumentos, não é verdade?
Muito bom dia a todos.
 
(Crónica rádio F - 30 de Maio de 2016)