quarta-feira, maio 25, 2016

Ponto de Vista


Com pompa e circunstância o governo apresentou o novo Simplex. Para o diferenciar daquele lançado há 10 anos por José Sócrates, agora chama-se Simplex Mais. Embora os Simplexes não se meçam aos palmos, também poderia ser o Simplex Menos. De facto, o de José Sócrates arrancou com 957 medidas. Este, apesar de ser Mais, arranca com Menos: apenas 255 medidas.

Bem sabemos como em política a imagem é tudo. Daí a importância dos sound bites para sumarizar a ideia que se pretende vender. No caso em apreço, o que o governo pretende passar é a ideia de uma administração pública com menos papel. Ou antes, menos dependente do papel, mas que se deseja com papel reforçado na sua relação com o cidadão. Tudo resumido na expressão “menos papel no estado e mais papel do estado”.

Na cerimónia de apresentação deste novo Simplex, o primeiro-ministro vincou, de forma inequívoca, que um estado moderno é um estado eficiente. Esta é uma ideia consensual, o que me suscita desde logo algumas dúvidas. É que quando vejo um político refugiar-se em ideias consensuais, fico sempre com uma pulga atrás da orelha.

A informatização da relação entre cidadãos e administração pública alcança hoje o seu expoente máximo em países do norte da Europa, aonde até a escritura de uma casa pode ser efetuada pela internet, com a devida encriptação de procedimentos. Mas isso só é possível porque nesses países os alunos do 1.º ano do 1.º ciclo recebem desde logo um computador por cabeça, já sem falarmos num posterior conjunto de funcionalidades e capacitações que os acompanham durante o resto da sua vida escolar.

Significa isto que nem sempre querer é poder. Portugal é, infelizmente, uma realidade algo diferente. Já nem sequer me refiro à elevadíssima percentagem de analfabetismo funcional e informático que ainda prevalece entre nós. Ou à sistemática ilegibilidade, incompreensibilidade ou indecifrabilidade da maior parte das leis para o cidadão comum. Refiro-me tão só à costumeira atitude de arrogância e sobranceria da administração pública na sua relação com os cidadãos. Transferir o meio de contacto entre as partes do papel para o computador não vai mudar grande coisa.

Recordo-me de há uns dois anos ter lido, por exemplo, uma lei de 2013 que dá pelo nome de “Lei de Livre Acesso à Natureza”. Tive acesso à versão original e à respetiva tradução em língua portuguesa. Está redigida em cerca de duas páginas A4. É simples, intuitiva, lógica e praticamente insuscetível de qualquer dúvida interpretativa. É uma lei norueguesa e – como todas as leis naquele país – só pode ser publicada se comprovadamente puder ser interpretada de forma simples e direta por um painel de crianças com 10 anos de idade. Tudo o que de mais diferente se possa imaginar em relação à forma como se fazem ou interpretam leis entre nós…

Em Portugal, em vez desta simplicidade, anuncia-se que o novo Simplex vai permitir aos recém-nascidos terem um médico de família logo no 1.º dia. Algo de que, verdadeiramente, eles nem sequer precisam. E ainda por cima, num país em que o mesmo Simplex é incapaz de tal generosidade para quase 1 milhão de portugueses sem direito ao mesmíssimo privilégio.

É por estas e por outras que tenho as maiores dúvidas em relação a estes sound bites tipo “Simplex renovado”. O que importa não é o papel ou o computador, mas sim o que lá está escrito. E é aí que tem de ser feita a revolução que é precisa. Coisa que não me parece nada ir suceder.

Precisamos é de leis que não entupam os tribunais, denegando assim na prática a justiça e os direitos aos cidadãos. De leis simples, claras e imunes à dúbia interpretação. De leis que tornem irrelevante a forma como se leem.

A semana passada, ao visitar um familiar num hospital, assisti, sem querer, a um desabafo de um doente já muito idoso, numa cama mesmo ao lado. Dizia ele, não sei bem a propósito do quê, que “Deus, quando tira a força, deveria tirar também a vontade”. No caso dos Simplexes e coisas afins, bem que poderíamos colocar a coisa ao contrário e afirmar que “Deus, quando dá a força, deveria dar também a vontade”...

Muito bom dia a todos.
 
(Crónica Rádio F - 23 de Maio 2016)