Com
pompa e circunstância o governo apresentou o novo Simplex. Para o diferenciar
daquele lançado há 10 anos por José Sócrates, agora chama-se Simplex Mais.
Embora os Simplexes não se meçam aos palmos, também poderia ser o Simplex
Menos. De facto, o de José Sócrates arrancou com 957 medidas. Este, apesar de
ser Mais, arranca com Menos: apenas 255 medidas.
Bem
sabemos como em política a imagem é tudo. Daí a importância dos sound bites para sumarizar a ideia que
se pretende vender. No caso em apreço, o que o governo pretende passar é a
ideia de uma administração pública com menos papel. Ou antes, menos dependente
do papel, mas que se deseja com papel reforçado na sua relação com o cidadão. Tudo
resumido na expressão “menos papel no
estado e mais papel do estado”.
Na
cerimónia de apresentação deste novo Simplex, o primeiro-ministro vincou, de
forma inequívoca, que um estado moderno é um estado eficiente. Esta é uma ideia
consensual, o que me suscita desde logo algumas dúvidas. É que quando vejo um
político refugiar-se em ideias consensuais, fico sempre com uma pulga atrás da
orelha.
A
informatização da relação entre cidadãos e administração pública alcança hoje o
seu expoente máximo em países do norte da Europa, aonde até a escritura de uma
casa pode ser efetuada pela internet, com a devida encriptação de
procedimentos. Mas isso só é possível porque nesses países os alunos do 1.º ano
do 1.º ciclo recebem desde logo um computador por cabeça, já sem falarmos
num posterior conjunto de funcionalidades e capacitações que os acompanham
durante o resto da sua vida escolar.
Significa
isto que nem sempre querer é poder. Portugal é, infelizmente, uma realidade
algo diferente. Já nem sequer me refiro à elevadíssima percentagem de analfabetismo
funcional e informático que ainda prevalece entre nós. Ou à sistemática
ilegibilidade, incompreensibilidade ou indecifrabilidade da maior parte das
leis para o cidadão comum. Refiro-me tão só à costumeira atitude de arrogância
e sobranceria da administração pública na sua relação com os cidadãos.
Transferir o meio de contacto entre as partes do papel para o computador não
vai mudar grande coisa.
Recordo-me
de há uns dois anos ter lido, por exemplo, uma lei de 2013 que dá pelo nome de
“Lei de Livre Acesso à Natureza”. Tive acesso à versão original e à respetiva
tradução em língua portuguesa. Está redigida em cerca de duas páginas A4. É
simples, intuitiva, lógica e praticamente insuscetível de qualquer dúvida
interpretativa. É uma lei norueguesa e – como todas as leis naquele país – só
pode ser publicada se comprovadamente puder ser interpretada de forma simples e
direta por um painel de crianças com 10 anos de idade. Tudo o que de mais
diferente se possa imaginar em relação à forma como se fazem ou interpretam
leis entre nós…
Em
Portugal, em vez desta simplicidade, anuncia-se que o novo Simplex vai permitir
aos recém-nascidos terem um médico de família logo no 1.º dia. Algo de que,
verdadeiramente, eles nem sequer precisam. E ainda por cima, num país em que o
mesmo Simplex é incapaz de tal generosidade para quase 1 milhão de portugueses
sem direito ao mesmíssimo privilégio.
É
por estas e por outras que tenho as maiores dúvidas em relação a estes sound bites tipo “Simplex renovado”. O
que importa não é o papel ou o computador, mas sim o que lá está escrito. E é
aí que tem de ser feita a revolução que é precisa. Coisa que não me parece nada
ir suceder.
Precisamos
é de leis que não entupam os tribunais, denegando assim na prática a justiça e
os direitos aos cidadãos. De leis simples, claras e imunes à dúbia
interpretação. De leis que tornem irrelevante a forma como se leem.
A
semana passada, ao visitar um familiar num hospital, assisti, sem querer, a um
desabafo de um doente já muito idoso, numa cama mesmo ao lado. Dizia ele, não
sei bem a propósito do quê, que “Deus, quando tira a força, deveria tirar
também a vontade”. No caso dos Simplexes e coisas afins, bem que poderíamos
colocar a coisa ao contrário e afirmar que “Deus, quando dá a força, deveria
dar também a vontade”...
Muito
bom dia a todos.
(Crónica Rádio F - 23 de Maio 2016)