Foi
finalmente aprovada a alteração no quadro legislativo da Procriação Medicamente
Assistida, legalizando-se o recurso à maternidade de substituição. Recordo
que até agora a lei portuguesa só possibilitava a procriação medicamente
assistida às mulheres casadas. Por isso, centenas de portuguesas faziam-na
todos os anos em Espanha desde 1988 – data em que tal passou a ser legalmente possível
no país vizinho – desde que tivessem as necessárias e suficientes condições
económicas.
Esta
barreira relacionada com o estado civil da mulher transportava-nos para outros
tempos. Ainda me recordo de – no auge do salazarismo – não só o trabalho
feminino estar proibido em certos setores ou profissões, como de permanecerem
restrições diversas nos casos em que às mulheres era permitido trabalharem. Por
exemplo, para contraírem matrimónio as professoras primárias tinham de
solicitar especial autorização ao Ministério da Educação Nacional, ao passo que
o celibato forçado ficou designado pelo regime às telefonistas da Anglo-Portuguese
Telephone Company, às profissionais do Ministério dos Negócios Estrangeiras, às
hospedeiras de ar da TAP e às enfermeiras dos Hospitais Civis. Isso mesmo, ouviram
bem, às enfermeiras, e isto pelo menos desde 1938, através da publicação do famigerado
Decreto-Lei n.º 28794, de 1 de Julho.
Evoluções
posteriores forçaram a Constituição Política do Estado Novo a reconhecer a
igualdade dos cidadãos perante a lei, “salvas, quanto à mulher, as diferenças
resultantes da sua natureza e do bem da família” (art.º 5º). Esta exceção, que constituiu
então a resistência possível à mudança, manteve-se até 1971, altura em que
expressão “do bem da família” foi omitida, mantendo-se ainda assim “as
diferenças resultantes da sua natureza”. Natureza e família, um fator biológico
e outro fator ideológico, constituíam afinal as bases do paradigma político do
Estado Novo para as mulheres. E não se julgue que este paradigma morreu com o
25 de Abril.
De
facto, a exclusão legal do direito à Procriação Medicamente Assistida por parte
das mulheres não casadas manteve-se durante anos, representando um resquício esquecido
dessa mentalidade fascista, muito bem defendido pela moral e pelos bons
costumes, pela igreja católica e por algumas correntes políticas que ainda hoje
nutrem – convenhamos que algo em segredo – saudosas simpatias por métodos e
desígnios de um dos períodos mais negros da nossa História.
Uma
vez que, para além das questões de natureza científica, estão sobretudo em
causa valores, a evolução agora ocorrida vem colidir de forma violenta com a
mentalidade de quem muitas vezes debita, com a maior das hipocrisias, discursos
sobre a defesa da família. Como aliás já fazia Salazar.
Esse
resquício do fascismo só sobreviveu por ter sido diluído nas tormentas de
outras discussões bem mais emblemáticas, como foram por exemplo a da interrupção
voluntária da gravidez, do casamento gay, ou da adoção por casais do mesmo
sexo. Claro que o facto de a tecnologia indispensável para a boa prossecução da
causa só ter evoluído mais recentemente, ajudou à sua hibernação na prioridade
das discussões sobre costumes. Afinal, abortos fazem-se há milénios,
inseminação e implantação de óvulos é coisa mais recente. Mas a mentalidade com
que se olha para um caso serve a papel químico para o outro. Esse é o segredo
da sobrevivência do fascismo, conseguir permanecer incrustado nos interstícios
da História, através das causas mais diversas.
Não
é por acaso que os resistentes à mudança se referem agora ao caso falando de
“barrigas de aluguer”. Eu, olhando para essa gente, penso antes em “cabeças de
aluguer”. E se no caso das primeiras a lei proíbe claramente qualquer tipo de
negócio ou de vantagem patrimonial, no caso destas últimas está demonstrada à
saciedade que há muitas formas de se pagar a quem nos põe a pensar da forma que
lhe interessa. E suspeito de que nem sequer é preciso passar-se a fronteira
para se receber…
Muito bom dia a todos.
(crónica na rádio F - 16 de Maio de 2016)