A Entidade Reguladora da Saúde (ERS)
abriu um inquérito por causa de umas notícias acerca de uns “rastreios
oftalmológicos” conduzidos por uma empresa privada, a M. A. Dias dos Santos,
Lda., propriedade de um médico que é simultaneamente o diretor do serviço de
oftalmologia da ULS da Guarda, bem como da sua esposa, que é ao mesmo tempo a
gerente de um grupo de lojas de óptica.
A ERS referiu, cingindo-se aos “factos”,
que o referido médico «terá solicitado
aos Coordenadores dos Centros de Saúde daquela Unidade Hospitalar [a ULS da
Guarda] para colaborarem e cederem as
instalações para a realização de um rastreio oftalmológico que ele próprio
teria organizado».
Referiu também que «foram sendo colocadas informações publicitárias nos diferentes Centros
de Saúde» apesar de alguns dos Coordenadores dos Centros de Saúde não terem
«conhecimento da iniciativa do rastreio».
Relatou ainda a ERS que o Conselho de
Administração da ULS da Guarda declarou «que
nada tinha a opor à realização dos referidos rastreios oftalmológicos desde que
sem encargos para a instituição».
Sempre baseada nos “factos”, a ERS
estabeleceu que «os rastreios foram
realizados nos Centros de Saúde em diferentes localidades onde o referido Médico
Oftalmologista e a Mulher também possuem lojas da mesma rede de óticas, Óptica
Lince, S.A.».
Também aludiu à existência de uma «situação de grave conflito entre os
interesses do setor público e o setor privado, tanto mais que […] “é proibida
qualquer relação societária entre quem faz oftalmologia e quem vende óculos ou
lentes”», considerando de permeio ser «inadmissível
que a ULS dê a sua anuência a uma situação que configura um grave conflito de
interesses entre o setor público e o setor privado».
Um dos médicos que testemunhou perante a
ERS no âmbito deste processo, também ele oftalmologista, reconheceu que «não faz sentido ir buscar os doentes com
patologias oftalmológicas específicas através deste tipo de rastreio, porque,
em primeiro lugar, o serviço em causa não tem [sequer] capacidade para tratar os doentes já existentes». Declarou também
que o rastreio tinha «outras intenções
que não o apoio ao doente, mas na realidade, pretende garantir interesses
puramente pessoais do seu proponente [o tal médico Dias dos Santos]».
Mais grave ainda, esse médico-testemunha
chegou ao ponto de confessar «ter
recebido uma proposta do próprio Dr. Dias dos Santos para remeter os doentes da
consulta hospitalar para as ópticas» e que o benefício dali retirado seria
uma «participação pecuniária consoante o
produto que fosse posteriormente vendido ao doente»!
Um outro médico-testemunha assumiu ter
conhecimento de que pelo menos dois médicos oftalmologistas do serviço dirigido
pelo autor do “rastreio” «foram por
várias vezes aliciados [sem sucesso] para
fazerem acompanhar o receituário de óculos com indicações aos doentes da
existência das ópticas Lince, contra o pagamento de uma verba por cada par de
óculos vendidos».
Face a tudo isto, a ERS admitiu «naturalmente que tal comportamento é
susceptível de coartar a liberdade de escolha dos utentes». Mas depois, num
verdadeiro passe de mágica, veio estabelecer que «Salvo entendimento distinto, tal factualidade não consubstancia matéria
que se enquadre no âmbito das atribuições e competências da ERS».
A cerejinha no cimo do bolo, sabendo-se
que o Dr. Dias dos Santos não apontou efetivamente qualquer arma à cabeça dos
doentes no intuito de os obrigar a irem às ópticas da sua esposa, é a conclusão
da ERS de que «das diligências encetadas
não resultou qualquer elemento capaz de confirmar a violação dos direitos de
acesso e da liberdade de escolha dos utentes, e ainda, que a situação tal como
denunciada já não se verifica na ULS da Guarda e, por isso, encontra-se já
ultrapassada, deliberando-se o arquivamento dos presentes autos».
Leram bem? Há “coartação” da liberdade
de escolha, mas em contrapartida não há “violação” da liberdade de escolha. E,
como a situação pertence ao passado, é melhor ficar tudo na mesma!
Enquanto digerem isto, eu, que tive a
infelicidade de ter lido todo o processo – sem conseguir sequer perceber para
que serve a ERS - vou aproveitar para vomitar e pelo caminho aliviar as
cólicas.
Enquanto desaperto o cinto e preparo os
guardanapos, só vos digo, falando de mim ou da ERS, que há momentos em que não
basta fugir, é necessário fugir-se para o lado mais conveniente…
(artigo publicado no jornal "O Interior" em 09/08/2012)