terça-feira, agosto 14, 2012

O vómito e mais qualquer coisa…

        Chegam as férias. Com pouco ou nenhum dinheiro no bolso, pouco mais nos resta que repousar e refletir. Com o dossier Relvas estabilizado em velocidade de cruzeiro e rocambolescas histórias de nomeações de amigalhaços e parentes, ou de negociatas, privatizações e extinções em massa de fundações, o melhor mesmo é quedarmo-nos pela Guarda. Eis o nosso pequeno mundo:

A Entidade Reguladora da Saúde (ERS) abriu um inquérito por causa de umas notícias acerca de uns “rastreios oftalmológicos” conduzidos por uma empresa privada, a M. A. Dias dos Santos, Lda., propriedade de um médico que é simultaneamente o diretor do serviço de oftalmologia da ULS da Guarda, bem como da sua esposa, que é ao mesmo tempo a gerente de um grupo de lojas de óptica.

A ERS referiu, cingindo-se aos “factos”, que o referido médico «terá solicitado aos Coordenadores dos Centros de Saúde daquela Unidade Hospitalar [a ULS da Guarda] para colaborarem e cederem as instalações para a realização de um rastreio oftalmológico que ele próprio teria organizado».

Referiu também que «foram sendo colocadas informações publicitárias nos diferentes Centros de Saúde» apesar de alguns dos Coordenadores dos Centros de Saúde não terem «conhecimento da iniciativa do rastreio».

Relatou ainda a ERS que o Conselho de Administração da ULS da Guarda declarou «que nada tinha a opor à realização dos referidos rastreios oftalmológicos desde que sem encargos para a instituição».

Sempre baseada nos “factos”, a ERS estabeleceu que «os rastreios foram realizados nos Centros de Saúde em diferentes localidades onde o referido Médico Oftalmologista e a Mulher também possuem lojas da mesma rede de óticas, Óptica Lince, S.A.».

Também aludiu à existência de uma «situação de grave conflito entre os interesses do setor público e o setor privado, tanto mais que […] “é proibida qualquer relação societária entre quem faz oftalmologia e quem vende óculos ou lentes”», considerando de permeio ser «inadmissível que a ULS dê a sua anuência a uma situação que configura um grave conflito de interesses entre o setor público e o setor privado».

Um dos médicos que testemunhou perante a ERS no âmbito deste processo, também ele oftalmologista, reconheceu que «não faz sentido ir buscar os doentes com patologias oftalmológicas específicas através deste tipo de rastreio, porque, em primeiro lugar, o serviço em causa não tem [sequer] capacidade para tratar os doentes já existentes». Declarou também que o rastreio tinha «outras intenções que não o apoio ao doente, mas na realidade, pretende garantir interesses puramente pessoais do seu proponente [o tal médico Dias dos Santos]».

Mais grave ainda, esse médico-testemunha chegou ao ponto de confessar «ter recebido uma proposta do próprio Dr. Dias dos Santos para remeter os doentes da consulta hospitalar para as ópticas» e que o benefício dali retirado seria uma «participação pecuniária consoante o produto que fosse posteriormente vendido ao doente»!

Um outro médico-testemunha assumiu ter conhecimento de que pelo menos dois médicos oftalmologistas do serviço dirigido pelo autor do “rastreio” «foram por várias vezes aliciados [sem sucesso] para fazerem acompanhar o receituário de óculos com indicações aos doentes da existência das ópticas Lince, contra o pagamento de uma verba por cada par de óculos vendidos».

Face a tudo isto, a ERS admitiu «naturalmente que tal comportamento é susceptível de coartar a liberdade de escolha dos utentes». Mas depois, num verdadeiro passe de mágica, veio estabelecer que «Salvo entendimento distinto, tal factualidade não consubstancia matéria que se enquadre no âmbito das atribuições e competências da ERS».

A cerejinha no cimo do bolo, sabendo-se que o Dr. Dias dos Santos não apontou efetivamente qualquer arma à cabeça dos doentes no intuito de os obrigar a irem às ópticas da sua esposa, é a conclusão da ERS de que «das diligências encetadas não resultou qualquer elemento capaz de confirmar a violação dos direitos de acesso e da liberdade de escolha dos utentes, e ainda, que a situação tal como denunciada já não se verifica na ULS da Guarda e, por isso, encontra-se já ultrapassada, deliberando-se o arquivamento dos presentes autos».

Leram bem? Há “coartação” da liberdade de escolha, mas em contrapartida não há “violação” da liberdade de escolha. E, como a situação pertence ao passado, é melhor ficar tudo na mesma!

Enquanto digerem isto, eu, que tive a infelicidade de ter lido todo o processo – sem conseguir sequer perceber para que serve a ERS - vou aproveitar para vomitar e pelo caminho aliviar as cólicas.

Enquanto desaperto o cinto e preparo os guardanapos, só vos digo, falando de mim ou da ERS, que há momentos em que não basta fugir, é necessário fugir-se para o lado mais conveniente…

(artigo publicado no jornal "O Interior" em 09/08/2012)