sexta-feira, novembro 18, 2011

SOLIPSISMO

O mundo é cada vez mais individual. Surge, cada vez mais, a ideia de que a única realidade é o próprio Eu. O Eu dos donos e dos senhores do poder. Pretendem que tudo lhes pertence, inclusive os sonhos que não são seus. Acham que a legalidade emana apenas da força e dos mandatos que os mantêm agarrados às cadeiras.
Aquilo que para o povo é uma crise, é, na verdade, para tal gente, apenas mais um assalto. Um assalto à mesa do orçamento. Mas é também, para quem de entre nós queira ver, uma janela para os métodos e para os esconderijos onde os poderosos escondem a comida roubada.
Os seus métodos são a mentira, a falácia, a habilidade, a retórica e os prenúncios pré-eleitorais de que tal crise seria sempre dos outros, que não chegaria ao Portugal dos pobres. Em suma, a xico-espertice, só para se safar, promete sempre, para celebrar o negócio, festa temperada por constança e boa pança.
Convidados não faltam. O vinho desta festa, assim como o porco no espeto, são, como sempre foram, o assalto aos dinheiros públicos por quem menos deles precisa. A sobremesa são os relatórios forjados, as contas e balanços viciados, as facturas escondidas, e outras coisas que tais, à moda do bailinho da Madeira. A louça suja, assim a modos processo face-oculta, a escandaleira BPN, as reformas vitalícias dos políticos, as contratações directas, as avenças a gosto, os desvios colossais, somos nós, o povo, quem tem de lavar…
A fogueira do churrasco, essa, foi sempre alimentada pela queima pública de quem ousou denunciar e prevenir. Nesta festa parola e pateticamente saloia nunca houve lugar para o vaticínio anunciado pelo simples bom senso. Porquê? Porque eram tantos os convivas que não cabiam lá mais e nada!
Depois da orgia há que confessar os pecados. Sim, para repurificar a alma. Nasce então, qual filha da festa, a pantomina do julgamento criminal dos políticos. Ao seu lado vêm os primos, materializados numa magnificente precariedade cuja barriga é um desemprego sem fim, calçando uma angústia medonha. Alguns vestem-se com o corte de subsídios, bem à medida do custo do vinho e do porco que consumiram.
Quando o porco esturricou e o vinho azedou, a culpa passou a ser dos que viveram acima das possibilidades. Sim, que isso de se querer não ser pobre num país de ladrões é um luxo imperdoável! E por isso, punível. Com troikas e garrotes…
A justiça, como dizia o bastonário da ordem dos advogados, é branda para os poderosos e poderosa para os fracos. Por isso a hipocrisia deste negócio não pode deixar de nos trazer à memória O Mercador de Veneza, no qual Shakespeare concluía que não há vício tão simples que não afivele a aparência da virtude. Esta gente, bem sabendo disso, invoca antes em sua defesa que é bem melhor ser-se um oportunista e flutuar do que ir a pique com quaisquer princípios que se lhes agarrem ao pescoço!
Haja vergonha!
(Artigo publicado no jornal "O Interior" em 10 de Novembro de 2011)