segunda-feira, janeiro 29, 2007
E AS MULHERES, SENHOR, CONTINUARÃO A SER HUMILHADAS?...
CARTA ABERTA AO SENHOR BISPO DE VISEU
Começo por lhe pedir desculpa por me ter visto obrigado - por motivos urgentes e inadiáveis - a retirar-me do Auditório da Escola Superior de Educação antes de poder ouvir a resposta à questão que lhe coloquei, no debate sobre o referendo da despenalização da interrupção voluntária da gravidez (IVG).
Tive, no entanto, o cuidado de perguntar a quem lá ficou o teor da sua réplica. Não considero que a sua resposta tenha explicado a contradição que apontei no seu discurso.
Aliás, o senhor bispo deu uma conferência de imprensa logo no dia seguinte, onde as contradições ainda se acentuaram mais.
Vejamos: Disse o senhor bispo que se a pergunta do referendo fosse: "concorda com a despenalização da mulher?", votaria SIM.
Felicitei-o, porque é isso exactamente que está em causa neste referendo. Apenas e só isso. O que se pergunta é se as mulheres que se vêem obrigadas a abortar devem ser julgadas e condenadas à prisão, como prevê a lei actual.
Disse o senhor bispo, na ocasião, que "a Igreja não pede, nem nunca pedirá, que alguém seja penalizado".
Mas o delegado do Ministério Público pediu três anos de prisão, a pena máxima, para as três mulheres julgadas no Tribunal de Aveiro, que acabariam por ser condenadas a penas de seis meses de prisão, suspensas por dois anos.
Dizem os defensores do "não" que ainda nenhuma mulher foi presa, de facto.
Mas haverá pior pena do que ser perseguida, detida pela polícia e obrigada a submeter-se a exames ginecológicos ("abra as pernas, minha senhora, para vermos o que andou a fazer!")? Perdoe-me, senhor bispo, a crueza da ilustração, mas foi assim que se passou com aquelas mulheres, humilhadas por um julgamento que atentou contra o seu direito à intimidade da vida privada e familiar e contra a sua dignidade.
Lembre-se da parábola da mulher adúltera.
Acredito na sua bondade e não o vejo a lançar a primeira pedra, mas o bispo que confessa a incoerência da sua Igreja não sentirá um estremeção na consciência ao ver-se do lado dos supliciadores?
Gentil Martins defendeu a punição exemplar das mulheres.
O senhor bispo já condenou a intolerância e a agressividade de alguns fundamentalistas. Compreendo que a sua posição não é fácil.Tal como não é a do cardeal patriarca de Lisboa que começou por considerar que o aborto não é um problema religioso, pelo que aconselhou os padres e os bispos a não se meterem na campanha. O senhor já sabia que as suas palavras iriam provocar reacções como a do bispo de Lamego que o acusou de lançar a confusão nas hostes do "não".
O senhor bispo disse aos jornalistas que a pergunta do referendo é falaciosa e dividiu-a em três partes.
Estaria de acordo com a primeira, a despenalização da mulher, se a seguir não viesse "o aborto livre até às dez semanas" e a condição de ser feita em estabelecimento autorizado, o que entende como uma promoção do aborto por parte do Estado. Aborto livre? Então preferiria que não houvesse limite? Em quase todos os países da Europa a legislação permite abortar, a pedido da mulher, até às 12 semanas ou mais. Porquê, então, as 10 semanas? Porque há estudos que mostram que 73% dos abortos acontecem até às 10 semanas.
E se o Estado cumprir a sua responsabilidade no campo do planeamento familiar e da educação sexual, as gravidezes não desejadas diminuirão significativamente. Por isso é que a Bélgica e a Holanda são os países onde há menos abortos. Em todos os países em que o Estado assume as suas responsabilidades na saúde sexual e reprodutiva, acaba o negócio e os perigos do aborto clandestino.
Não nos esqueçamos das mortes de mulheres como o de Maria Ester, que morreu aos 32 anos, no Hospital de Viseu, em 2000, depois de ter recorrido a uma "curiosa" que lhe provocou um aborto com um pau de videira. Deixou marido e duas filhas pequenas.
E ainda no ano passado, num outro hospital, morreu uma jovem de 14 anos por ter engolido um número excessivo de comprimidos para abortar, segundo Luís Graça, da Ordem dos Médicos. Vidas reais, de pessoas concretas.
Por outro lado, porque como disse o padre e professor de filosofia, Anselmo Borges "antes da décima semana, não havendo ainda actividade neuronal, não é claro que o processo de constituição de um ser humano esteja já concluído. De qualquer modo, não se pode chamar homicídio, sem mais, à interrupção da gravidez levada a cabo nesse período."
E aqui chegamos ao ponto fulcral da campanha do "não": a questão da vida.
Volto a lembrar-lhe que o Bispo de Beja reconheceu que "o embrião fecundado não é pessoa humana, porque não tem consciência dos seus actos. Não tem alma".
E num debate recente na Rádio Renascença, o bispo Fernando da Luz Soares, da Igreja Lusitana (anglicana), portanto, um bispo cristão, afirmou: "Não está cientificamente provado que o início da vida humana comece na concepção".
Na mesma ocasião, o prof. Joshua Ruah, médico e membro da comunidade judaica, disse que "a dignidade humana é dada ao nascer. Não existem exéquias fúnebres para abortos".
E volto a citar-lhe o padre Manuel Costa Pinto, bem conhecido na Diocese de Lamego: "Precisamente porque defendo o direito à vida ataco a penalização. O ser, repare que não disse o ser humano, que está dentro do ventre da mulher, não se sabe bem até que ponto tem vida própria, mas admitamos que sim. A mulher também tem vida e a vida dela é anterior e se calhar tem mais valores a defender do que a vida desse ser. (...) Ser condenado pelo direito civil não faz sentido nenhum".
Volto a colocar-lhe a questão: como é que pode basear-se num princípio que não é consensual entre os cristãos e até entre os teólogos católicos, para justificar a penalização e a humilhação das mulheres? Não tem receio, senhor bispo, de que daqui a umas décadas, venha outro Papa pedir perdão pelos crimes cometidos agora contra as mulheres, como fez João Paulo II relativamente aos crimes da Igreja contra a liberdade e os direitos das mulheres ao longo dos séculos?
Na Conferência do Cairo, das Nações Unidas, os governos acordaram que os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres são direitos humanos e incluem o acesso à contracepção, ao aborto legal e a cuidados de saúde na gravidez e no parto.
Também uma resolução do Parlamento Europeu recomenda que, "a fim de salvaguardar a saúde reprodutiva e os direitos das mulheres, a IVG seja legal, segura e universalmente acessível." A Organização Mundial da Saúde defende que: "Os governos têm de avaliar o impacto dos abortos inseguros, reduzir a necessidade de abortar e proporcionar serviços de planeamento familiar alargados e de qualidade, deverão enquadrar as leis sobre o aborto tendo por base um compromisso com a saúde das mulheres e o com o seu bem-estar e não com base nos códigos criminais e em medidas punitivas.
"Choca-me o repetitivo discurso do senhor bispo acerca da necessidade de aumentar a natalidade no nosso país. Essa é uma visão materialista, economicista e utilitarista da mulher. "Votamos Sim, porque entendemos a gravidez como um projecto de amor" e "uma gravidez indesejada não é um projecto é uma pena", como disse o católico José Manuel Pureza, professor universitário, activista do SIM. Mas, repare que a França, onde o aborto é permitido até às 12 semanas, é o país com maior taxa de natalidade da União Europeia. Num país onde há tantas crianças abusadas e maltratadas (até por padres e freiras, como aconteceu em Évora), e numa região onde casos como a da pequena Sara, assassinada pela mãe, ou o da bebé de Moselos (que deverá ficar cega de um olho) ainda estão bem presentes, não posso deixar de repetir as palavras de Frei Bento Domingues: "Mais valia que não tivessem nascido, porque só há uma solução verdadeiramente humana: que os pais só tenham os filhos por quem o amor se possa responsabilizar!".
Não basta, senhor bispo, ficar pelas intenções piedosas, ou por anúncios de projectos caritativos e paternalistas, enquanto lava as mãos, como Pilatos, acerca do cerne da questão em referendo: continuar a humilhar as mulheres ou despenalizá-las. O senhor disse que votaria SIM à despenalização. Confio no seu espírito cristão. E, como disse o padre Anselmo Borges, o voto é secreto.
Com os meus respeitosos cumprimentos,
Carlos Vieira e Castro