quarta-feira, maio 07, 2014

Ponto de vista

Há cerca de duas semanas, o primeiro-ministro de Portugal, referindo-se à aproximação do programa de resgate a que temos estado submetidos, garantiu, mais uma vez, que no futuro o controle do défice público não ocorreria à custa de mais aumentos de impostos.
Passos Coelho afirmou, e passo a citar, que “não são medidas que incidam em matéria de impostos, salários ou pensões, creio que já esclareci bem essa matéria e não creio sinceramente que devemos estar todos os dias a criar uma notícia em volta dessa matéria”. Garantiu que as medidas incidiriam na, e volto a citar, “poupança ao nível da máquina do Estado”, embora não tenha esclarecido se se referia à máquina partidária do Estado. Perante a suspeita generalizada de que, mais uma vez, seríamos vítimas de um dos muitos logros com que anteriormente fomos brindados, Passos Coelho insistiu que, e cito novamente, “não há nenhuma razão para estar a criar um bicho-de-sete-cabeças à volta desses cortes que o Estado vai ter de fazer para o próximo ano”.
Como pelos vistos mentir já não basta para nos chocar, Passos Coelho atirou-se ainda na altura a um patético exercício de propaganda pré-eleitoral, garantindo que, oiçam só, “vivemos, felizmente cada vez mais, tempos de normalidade e não deixaremos de transmitir com muita transparência aos cidadãos, aquilo que são as nossas intenções”.
Decorridas que estão duas semanas, a “normalidade” de Passos Coelho e dos seus ministros leva-os a fazer o oposto daquilo a que se comprometeram. O Documento de Execução Orçamental, anunciando para 2015 um novo aumento no IVA e um agravamento na Taxa Social Única dos trabalhadores, é a prova disso mesmo.
Por exemplo, os funcionários públicos terão os seus salários cortados durante oito anos, com a falácia de que vão começar a reaver o que lhes foi cortado, mas apenas quando houver condições. Como é mais fácil ir à lua a pé do que algum dia reunir as tais condições, está consumado o cinismo de quem conseguiu tornar realidade a brejeira piada de quem afirmava que um dia ainda teríamos saudades da troika!
No meio de mais não sei quantos mil milhões de euros de envergonhada austeridade até 2016 e de uma dívida pública que ainda sobe mais em 2014, no meio de tantos e inglórios sacrifícios da classe média e dos mais pobres, ouviram-se pérolas como a de que “o aumento do IVA será amigo da economia”, pela boca de Passos Coelho, ou “o governo tem a preocupação de proteger os mais desfavorecidos”, pela boca da ministra das Finanças, ou ainda, “o Documento de Execução Orçamental é um bom documento para a economia”, por Pires de Lima.
Já sabíamos que a democracia está doente, muito doente. Não é novidade que o povo tem da generalidade dos políticos, sobretudo daqueles que acedem ao poder, uma ideia que pode ser traduzida por uma expressão popular: uma grande corja de aldrabões!
Mas é, infelizmente, pelo menos para mim, uma novidade que o país não reaja, face ao deplorável estado de falta de vergonha a que chegámos, com a revolta e a raiva que se esperaria. Basta olhar para as sondagens que, de forma geral, mantêm tudo mais ou menos na mesma.

Portugal tem “um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que já nem com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai”.
Estas últimas palavras não são da minha autoria. São de Guerra Junqueiro e foram proferidas em 1896, ou seja, há 120 anos. Infelizmente são tão atuais hoje, como o eram à data. Nada mudou. Apenas as moscas que não conseguimos enxotar. 
Tenham um bom dia!

(Crónica Rádio F - 5 de Maio de 2014)