No dia 12 de março fez 158 anos que nasceu um dos maiores escritores da Língua Portuguesa, Raúl Brandão. Deixou uma extensa obra literária e jornalística que muito influenciou a literatura em língua portuguesa com profundidade filosófica, marcando o seu comprometimento ético e social, numa linguagem forte de contrastes, contradições e ruturas que prefiguram a modernidade do século XX. De entre as suas obras imortais, destaco Húmus, assim como “Os Pobres”, “Os Pescadores” e outras tantas que recomendo a sua leitura. "Húmus" é sua obra maior, inovando na narrativa sem enredo nem personagens. “Não só os sentimentos criam palavras, também as palavras criam sentimentos. São a vida e quase toda a nossa vida – a razão e a essência desta barafunda. É com palavras que construímos o mundo. É com palavras, que são apenas sons, que tudo edificamos na vida. Mas agora que os valores mudaram de que nos servem estas palavras? É preciso criar outras, empregar outras, obscuras, terríveis, em carne viva, que traduzem a cólera, o instinto e o espanto.” assim se pode ler em “Húmus”. O mote a ser desenvolvido durante toda a “deambulação metafísica” é apresentado nas primeiras linhas do texto: "Uma vila encardida – ruas desertas – pátios de lajes erguidas pelo único esforço da erva – o castelo – restos de muralha que não têm serventia: uma escada encravada nos alvéolos das paredes não conduz a nenhures." A descrição da vila, que pode ser um lugarejo, uma cidade ou o próprio país. Daqui se depreende que a vila se situa num espaço de negatividade. Habitada por seres recalcados, sem história nem passado, de que apenas se entreveem características associadas à banalidade do seu quotidiano, “a vila é um simulacro. Melhor: a vida é um simulacro”. Onde o futuro não existe! As personagens que preenchem este espaço ficcional são elas próprias um produto da narrativa, e, tal como a vila, não representam ninguém. Fazem parte desse conjunto de velhas – e atente-se à ironia dos seus nomes – um Santo; as Teles que “odeiam as Sousas”; as Fonsecas que “passam a vida a fazer cortesias”; as Albergarias que “só têm um fim na existência: estrear todos os semestres um vestido no jardim”; a D. Engrácia; a D. Biblioteca, “sempre a primeira em todas as listas de esmolas”, e seu filho, “o respeitável Elias de Melo”, o impoluto que “deixa morrer a mãe à fome e todos os anos dá contos de réis aos asilos”. A D. Restituta, “sempre a acenar que sim à vida”; a D. Procópia “a abrir a boca com sono”; a D. Felizarda; a D. Hermengarda; a D. Penarícia; o Félix procurador; e uma velha criada, que “Carrega. Obedece. Serve as outras velhas todas: a Joana”. Esta vila, embora “tumular e encardida”, “oculta dentro dos seus muros um sonho desconforme”. Esse sonho é não morrer, é a imortalidade. E esse sonho é também o inconformismo dum homem - o Gabiru, “singular filósofo”. Outro dos temas explorados por Raúl Brandão é o do trabalho do silêncio, que em Raul Brandão parece estar associado à ineficácia e à impotência comunicativa: “O silêncio! O pior de tudo é o silêncio, e o que se cria no silêncio, o que eu sinto que remexe no silêncio” como refere Raúl Brandão. O Húmus termina com um grito de revolta contra a imobilidade, contra a tradição que se impõe autoritária, reacionária, e a favor da revolta da criatividade, do novo: “Ouves o grito? Ouve-lo?". Outra das lições do Húmus é a reflexão que propõe relativamente ao problema da esfera criadora da linguagem. Uma vez que a consciência só se torna realidade quando materializada em signos, Raúl Brandão coloca o problema da imobilidade social a par do desgaste da linguagem. “Sempre as mesmas coisas repetidas, as mesmas palavras, os mesmos hábitos”. Porque “Atrás das palavras sinto uma coisa descabelada e frenética, o espanto, a mixórdia, a dor, as forças monstruosas e cegas”, refere Raúl Brandão. Ontem como hoje! E se toda a arquitetura ideológica está em ruínas, para que se opere uma mudança nos valores da sociedade é necessário reinventar as palavras, depurá-las das marcas do passado, achar nelas a sua outra dimensão. Necessário e urgente. E as velhas? São intérpretes de uma certa dignidade pequeno burguesa no meio da intriga, da maldade, da inveja, da mesquinhez. Raúl Brandão alerta para o facto da pequena burguesia estar a tomar conta de tudo. Que o grande anseio libertador que vinha do século XIX morre às mãos de uma pequena burguesia que é aquilo que irá dar na ditadura do Estado Novo. E se há obra onde melhor se compreende como o salazarismo vai nascer é no Húmus. Estas velhas todas é que vão criar a base social da ditadura em Portugal. Raúl Brandão mostra-se desiludido pela evolução da República Portuguesa, que entre 1910 e 1926, teve sete eleições legislativas gerais, oito eleições presidenciais e 39 governos sem que se vislumbrasse qualquer melhoria para a classe trabalhadora que encontrou em Raúl Brandão um dos que melhor descreveu o trabalho operário e as suas condições de vida. Se a vila é a imagem decadente de uma sociedade a caminho da ditadura, a desilusão com a República é o sonho não conseguido. Por todas as razões leiam Húmus de Raúl Brandão e tirem as vossas ilações com o que se vive atualmente.
Tenham uma excelente semana com boas e profícuas leituras.