Finalmente os deputados da Assembleia da República, os representantes dos cidadãos, tomaram posse. E, de imediato, o Governo de Costa apresentou o seu programa. Um programa que é o mesmo que foi chumbado em Janeiro. Agora com as costas bem respaldadas pela maioria absoluta que os portugueses, inesperadamente, lhe conferiram. O que tem esta maioria absoluta para se arvorar em paladina das transformações que o país tanto reclama? Nada e maioria de esquerda muito menos. Vemos uma maioria absoluta de um partido menos socialista e mais liberal. Aproxima-se uma nova crise ainda mais radical do que as anteriores e com poucas alternativas de saída. Estados inteiros leiloam-se a fim de arrecadarem o que entregaram de mão beijada à agiotagem. Degrada-se ainda mais a vida dos trabalhadores super explorados. A pobreza aumenta de forma desmesurada; as falências das empresas são múltiplas; e uma massa de trabalhadores estão endividados dado que os salários são reduzidos. E que dizer dos pensionistas que a cada ano perdem poder de compra. Aumenta a segregação daqueles que vagueiam pelas ruas, pelas faculdades, pelas casas sem o mínimo de conforto. O marginal, o sem futuro, o pobre, o estudante eternamente jovem porque não tem trabalho para a vida adulta, tornaram-se um ponto no radar do estado de sítio permanente. Os olhares dos ditos democratas, mais sensíveis aos perigos do seu mundo, foram forçados a tomar medidas preventivas. Era preciso evitar motins, incluir nos espaços de poder os eleitos domesticados, criar uma gramática própria, que transmitisse em modas tribais e urbanas, tornar o esvaziado valor democrático em dogma e religião. De repente, todo um aparato foi montado. Reformar o capitalismo global; torná-lo humano. Era preciso, no entanto, exportar a gramática do império, a sua visão do mundo, e com ela formas de ação que dominassem subtilmente a desorganizada esquerda. Um tipo de velho colonialismo com nova roupa; subtil, desagregador, baseado na fragmentação da classe. Custeou subalternos para serem bons subalternos. E, no entanto, os procedimentos de controle “democrático” mantêm a sua insegurança diária, garantida pelo sonho de pacificação. Ergueu-se, pela primeira vez, uma esquerda pálida, alaranjada, guiando-nos tranquilamente ao inferno dos particularismos identitários que fomentaram, a contragosto da ingenuidade. E esse é só um dos braços do empoderamento liberal, justificado pelo empreendedorismo da bicicleta da comida de plástico ou na transformação de portugueses em empreendedores empoderados e fazendo crescer a ilusão de riquismo fácil, na lógica da chico-espertice que caracteriza o português. Fundou-se a esquerda liberal; um paradoxo tornado força material ao ser propaganda como único caminho efetivo. E graças aos diversos financiamentos, e apoios de uma burguesia cautelosa, tornou-se força hegemónica, defensora de “mudanças graduais, pacíficas, democráticas, representativas”. Dentro da ordem que assassina e violenta o trabalhador. Por outras palavras, formou-se uma polícia que vigia diuturnamente os descontentes; ataca a violência dos violentados pelo Estado; suga a energia da juventude para projetos que respeitem a Lei de responsabilidade fiscal; educa o sonho “tresloucado” de mudanças radicais para a gestão da miséria. O óbvio dos resultados revela-se no quotidiano áspero de um país de desigualdade brutal e paz podre. Onde a corrupção é pasto para os vermes. Mas como refletir sobre os pressupostos dessa dita esquerda? Como demonstrar os limites da sua atuação para além da empiria? Essa dita esquerda afirma a subjetividade particularizada para depois diluí-la na falsa política liberal. Ao imbuir-se de particularismos e esforçar-se pela manutenção do lugar, e não pela sua implosão, opta-se pela diferença determinada pelo aparato social sob a égide da mercadoria. Em termos mais simples, criam-se, sob o rótulo de política, nichos de mercados próprios à teologia neoliberal. A esquerda liberal, esse oxímoro só possível pelas derrotas históricas da classe trabalhadora, clama por um lugar no espaço algébrico do poder, e não pela implosão desse lugar pela topologia do negativo imposta pela classe. Acredita no rosto humano do capital e na posição apolítica que tomou a forma de parlamento. Foi a esquerda liberal, no entanto, que se recusou a descer para o campo aberto da política quando procurou conciliar interesses inconciliáveis e gerir a crise que se tornou dispositivo de governo. Foi a extrema-direita que, aproveitando-se da domesticação proposta por essa mentalidade, se insurgiu, dominou as ruas e impôs a agenda neoliberal aproveitando-se de uma insatisfação legitimamente popular e, assim, armou uma contra-revolução permanente mesmo que não tenha existido horizonte revolucionário algum. No momento em que nunca houve tanta riqueza, mais e mais a miséria torna-se o único bem comum. O problema é que parte desse pensamento estabelece uma disputa que fica entre um capitalismo neoliberal, maligno e outro de “rosto humano”. Acredita que a democracia não funcionou bem quando na verdade a democracia liberal é isso mesmo: morte dos indesejáveis, exclusão da maioria dos centros dos acontecimentos e Estado de exceção permanente contra os pobres. É muito mais fácil afirmar a identificação, o lugar subalterno, do que destruir qualquer possibilidade de subalternidade. Mas, também, é muito mais distópico e tem nos conduzido à barbárie. No entanto, quem o faz não é um sujeito senão um simples sujeitado.
Tenham uma boa semana.