O governo bem tentou que o processo também envolvesse os centros de saúde mas as autarquias acharam que era ir longe de mais.
E o processo da municipalização da saúde, por enquanto parou.
Mas voltemos ao processo da municipalização da educação.
É um processo que ainda está longe de ser consensual pois dos 278 concelhos apenas 116 já aceitaram voluntariamente o reforço de competências em matéria de educação.
Este processo levanta muitas dúvidas e poucas certezas. Somos dos que defendemos um processo de descentralização do sistema educativo, mas com um pressuposto, o reforço da autonomia das escolas o que, evidentemente, não é igual à municipalização que é o modelo que está a ser instalado.
Lembrar aos mais distraídos que este processo tem tudo a ver com o célebre «Pacote Relvas» que iniciou o processo da municipalização dos serviços com a célebre fusão das freguesias.
Seria também interessante considerar os resultados de experiências de "municipalização" realizadas noutros países cujos resultados estão longe de ser convincentes. Na Suécia, por exemplo, está a assistir-se justamente a um movimento contrário ou seja, de "recentralização" considerando os resultados, maus, obtidos com a experiência de municipalização.
O que significa esta municipalização da educação em Portugal?
Um dos aspetos que merece destaque é o reforço das atribuições dos Conselhos Municipais de Educação, composto por representantes dos eleitos locais, dos serviços do Ministério da Educação, do pessoal docente, do pessoal não docente, das associações de pais, dos estudantes, e serviços de educação, saúde, segurança social, emprego e formação profissional, forças de segurança, juventude e desporto e instituições particulares de segurança social.
Uma panóplia de elementos onde a solução para os problemas vai ser difícil.
Estes conselhos municipais vão ter funções também elas de enumeração exaustiva, um cardápio de intenções.
Vejamos: poderão emitir pareceres vinculativos sobre a estratégia educativa municipal, a participação do município em projetos e programas educativos e formativos de âmbito intermunicipal, as modalidades de organização das escolas e as medidas de promoção do sucesso escolar e prevenção do abandono escolar precoce.
No âmbito da gestão escolar e das políticas educativas são delegadas competências nos domínios da definição do projeto educativo municipal ou intermunicipal, da rede escolar e de oferta educativa e formativa; do planeamento e gestão dos transportes escolares; da gestão do calendário escolar tendo em conta os dias globais de atividade; da gestão dos processos de matrícula e colocação dos alunos; da decisão sobre recursos apresentados na sequência disciplinar a alunos e aplicação de sanção de transferência de estabelecimento de ensino; e da gestão dos processos de ação social escolar.
No âmbito da gestão curricular e pedagógica, são delegadas competências na definição de normas e critérios de planificação no âmbito do ensino profissional e formação em contexto de trabalho; na definição das componentes curriculares de base local; e na definição de dispositivos de promoção do sucesso escolar e de estratégias de apoio para alunos.
No âmbito da gestão dos recursos humanos, são delegadas competências no domínio do recrutamento, gestão, alocação, formação e avaliação do desempenho do pessoal não docente; e no recrutamento de pessoal para projetos específicos de base local. É delegada toda a gestão orçamental e de recursos financeiros e, no âmbito da gestão de equipamentos e infraestruturas do ensino básico e secundário, são delegadas competências nos domínios da construção, requalificação, manutenção e conservação das infraestruturas escolares; na seleção, aquisição e gestão de equipamentos escolares, mobiliário, economato e material pedagógico.
De fora, por enquanto, fica a gestão dos professores já vinculados ao Ministério da Educação, presumindo-se a manutenção do sistema de recrutamento em vigor, embora os municípios passem a deter competências próprias para a contratação de professores para a designada oferta educativa de base local, desde que não existam docentes vinculados nas escolas do concelho ou na zona pedagógica respetiva.
Ou seja, a porta para o envolvimento do pessoal docente em toda esta tramoia está escancarada. Só não percebe quem tem talas.
A concretizar-se, esta medida corresponde a uma verdadeira municipalização do ensino, no sentido de que um vasto conjunto de atores locais passam a decidir sobre aspetos muito importantes da vida das escolas.
Mas há mais.
Destaca-se ainda a transferência de infraestruturas escolares reabilitadas do 2.º ciclo ao secundário, já que as escolas do 1.º ciclo e pré-escolar já são propriedade dos municípios.
E ainda falta o pior.
Basta consultar rapidamente o regime de autonomia, administração e gestão das escolas públicas, decreto-Lei n.º 75/2008, alterado e republicado pelo decreto-Lei n.º 137/2012 para verificar que algumas das disposições destes novos contratos de delegação de competências colidem claramente com as disposições relativas à autonomia, artigo 8.º, com algumas das competências dos conselhos gerais dos agrupamentos, artigo 13.º, bem como com várias das competências dos diretores artigo 20.º, reduzindo ainda a capacidade de influência nos processos de decisão, em cada agrupamento, dos professores, funcionários, pais e alunos.
O envolvimento das autarquias nas escolas e agrupamentos, designadamente em matérias como as direcções escolares, os Conselhos Gerais ou a colocação de não docentes e docentes, nas Actividades de Enriquecimento Curricular, por exemplo, tem mostrado variadíssimos exemplos de caciquismo, tentativas de controlo político, amiguismo face a interesses locais.
O controlo das escolas é uma enorme tentação.
Podemos ainda recordar as práticas de muitas autarquias na contratação de pessoal, valorizando as fidelidades ajustadas e a gestão dos interesses do poder. Assim sendo, teria sido recomendável alguma prudência embora, não acredite que se trate de imprudência, mas sim de uma visão, de uma agenda e, principalmente de entregar às autarquias a responsabilidade que devia caber ao Estado central.
Ou seja, é a desresponsabilização do poder central nestas como noutras matérias por forma a dar cumprimento à lógica liberal em curso.
Um Estado mínimo na intervenção social, cultural e económica.
Perguntamos mesmo qual será o papel de um Ministério da Educação? Cortar fitas? Uma figura de estilo?
Ainda na matéria da municipalização das escolas e dados os recursos económicos que se anunciam através das verbas comunitárias para além dos dinheiros públicos, e o que tem sido realizado nos projectos em curso parece clara a intenção política de aumentar a intervenção de terceiras entidades na definição da política de gestão das escolas, do modelo pedagógico e dos próprios conteúdos programáticos, para além da evidente gestão dos recursos humanos.
Um modelo com estas características, estruturas e entidades privadas a intervir nas escolas públicas, só é garantidamente bom para as entidades a contratar, não, muito provavelmente, para alunos, professores e escolas.
A municipalização das escolas é manifestamente um cada vez maior incremento e apoio a alguns nichos de mercado que propiciam o surgimento de empresas de vão de escada.
É necessário desfazer um equívoco que se tem promovido, descentralização não significa necessariamente municipalização, importa, isso sim, promover a autonomia o que é bem diferente e mais pertinente. Mais uma vez, confundir autonomia com descentralização traduzida em municipalização foi criar um equívoco perigoso que, entre outras consequências, vai dar, já está a dar, alguma cobertura a alguns negócios obscuros e nada transparentes mas igualmente a formas ditatoriais de governação na educação e agravar as desigualdades de aprendizagens entre regiões, agravando deste modo o despovoamento.
Coesão territorial? Mas que coesão?
Para a corja liberal que tanto acusou a escola de estar politizada agora, com esta municipalização, devem repensar as acusações e fechar a cloaca. A escola e consequentemente a educação, é bom recordá-lo, foi um dos pilares da construção democrática da Europa após a II Guerra Mundial. Percebam, pelo menos, isso.
(Crónica Rádio F – 4 de Abril de 2022)