sexta-feira, abril 09, 2021

Ponto de vista

 No dia 28 de agosto de 1963, Martin Luther King discursava para cerca de 250 mil pessoas sobre seu sonho de ver uma sociedade em que todos seriam iguais sem distinção de cor e raça. Um discurso que ficou para a História da Humanidade como: «I have a dream». Disse o reverendo pastor Martin Luther King nessa tarde de Agosto: "Estou feliz por estar hoje convosco num evento que entrará para a história como a maior demonstração pela liberdade na história de nosso país.», fim de citação. Luther King tinha razão tudo não passou de uma demonstração pela liberdade. Liberdade essa que em muitos estados norte americanos e na quase totalidade do globo continua a não se verificar. Basta lembrar os casos recentes de racismo que terminaram na morte de cidadãos por todo o lado. Como dizia Luther King devemos encarar a trágica realidade de que o negro ainda não é livre. A vida do negro está ainda infelizmente dilacerada pelas algemas da segregação e pelas correntes da discriminação. O negro ainda vive numa ilha isolada de pobreza no meio de um vasto oceano de prosperidade material. Mas hoje já não é só o negro. É o branco desprotegido, que pelo desemprego foi atirado para uma qualquer rua, é o cigano a quem a sociedade exige que cumpra as leis do país e que esse mesmo país o desconsidera, é o emigrante que foge da miséria para ser escravo, como noutros tempos outros irmãos seus foram forçados a ser escravos. É a luta desigual entre os que tudo detêm e os que vendem a força do trabalho. Vem tudo a propósito de um recente memorando da comissária para os Direitos Humanos do Conselho da Europa, Dunja Mijatovic, que insta as autoridades portuguesas a combater de forma mais determinada o aumento do racismo no país. Mas dizer que o memorando também podia e devia ser endossado à quase totalidade dos países da União. A comissária Dunja Mijatović manifesta preocupação face ao aumento do número de crimes motivados pelo ódio racial, assim como do discurso do ódio, visando particularmente os ciganos, os afro descendentes e as pessoas percecionadas como estrangeiras em Portugal. Dunja Mijatović recomenda ainda que a polícia e o Ministério Público adoptem uma definição mais lata de “crime de racismo” e realizem rapidamente uma investigação rigorosa e imparcial a todos os incidentes de cariz racista. No memorando, a comissária considera que o país necessita confrontar o seu passado colonial. E passo a citar a Comissária: “É importante tomar consciência das estruturas historicamente repressivas do colonialismo, dos preconceitos racistas entranhados na sociedade e das suas ramificações até aos nossos dias”, fim de citação. Nesse sentido, a comissária europeia afirma serem necessários esforços para debelar os preconceitos racistas contra as pessoas de ascendência africana, herdados de um passado colonial e do período da escravatura e aponta os currículos escolares para atingir essa consciencialização. Seria de todo conveniente refazer os conteúdos das aprendizagens ao nível da História que fala dos feitos do povo como actos de bravura e de epopeia mas esquece o lado dos escravizados sem os quais a mesma seria de todo impossível. É necessário e urgente, já há maturidade suficiente para o fazer, para olhar para os dois lados da moeda. Sem falsos heroísmos e patriotismos bacocos e sem paternalismos nem hipócritas formas de reescrever a História. Essa existe e está aí. Não se nega. Importa é conhecê-la na sua globalidade. Portugal usou e abusou da escravatura. Só o Brasil, antiga colónia portuguesa, recebeu 5 milhões de escravos durante 300 anos. Importa que os conteúdos programáticos refiram este lado da história. “Esforços adicionais são necessários para Portugal chegar a um acordo sobre o passado de violações dos direitos humanos, para combater os preconceitos racistas contra os afro-descendentes, herdados de um passado colonial e do comércio de escravos”, refere o Conselho da Europa, ao mesmo tempo que urge que o governo português repense a forma como se ensina a história colonial nas escolas mas igualmente a educação para a cidadania com respeito pelo outro. E refere ainda o Conselho da Europa a necessidade de desenvolver iniciativas destinadas a combater a discriminação contra os ciganos, como forma de combater o anticiganismo, “que continua disseminado na sociedade portuguesa e presente no discurso público de certos responsáveis políticos”, acrescenta a comissária. O governo português responde com iniciativas de cosmética que a nada conduzem a não ser fingir que algo foi feito para que tudo fique na mesma. As sucessivas violações aos direitos de todas as minorias vão acontecendo num país em que se continua a pensar que a memória se apaga com a destruição de monumentos. A dor é muito profunda e sangra. Adaptando a frase final do discurso de Martin Luther King aos tempos modernos diria que quando permitirmos que a liberdade ressoe, quando a deixarmos ressoar de cada estado, de cada cidade, vila e aldeia, seremos capazes de fazer chegar mais rápido o dia em que todos os filhos de Deus, mas todos sem excepção, poderão dar as mãos e cantar as palavras da antiga canção espiritual negra: Finalmente livres! Finalmente livres! Graças a Deus Todo Poderoso, somos livres, finalmente. 
Este é também o meu Humanismo.
Tenham uma boa semana.
 
(Crónica na Rádio F - 5 de Abril de 2021)