quarta-feira, março 31, 2021

Ponto de vista

Portugal, como quase todos os países a nível mundial, está a atravessar uma das piores crises económicas e financeiras que há memória. Esta crise era de facto uma crise anunciada. 
Ainda o vírus estava circunscrito à China e já se falava na crise económica e financeira que estava para chegar. 
A crise já determinou, em Portugal, que dois terços da população já não consegue pagar os créditos e as contas. Dos restantes 33% da população trabalham só para pagarem os débitos. São dados de um estudo recente da DECO. 
Mas para que se tenha uma ideia ainda mais precisa da gravidade da situação frisar que duas em cada três famílias já estão na pobreza. 
Já há 30 mil desempregados inscritos no Instituto Emprego e Formação Profissional. 
Mas os números do desemprego vão ainda aumentar quando chegarem as facturas das moratórias e o anúncio das empresas que vão ficar pelo caminho. 
Ora, era suposto que o governo estivesse nesta altura a desenvolver um plano para apoio às famílias carenciadas. E não será o tal plano de Recuperação e Resiliência que foi apresentado em Bruxelas para sacar os tais milhões que vai ser a solução para os graves problemas da economia portuguesa. 
O Estado português limitar-se-á a criar uma espécie de concílio dos deuses, das decisões da distribuição dos milhões, para que tudo pareça transparente e onde só os amigos do costume terão acesso. 
Como aceitar que o tal Plano dito de resiliência mas que de recuperação tem muito pouco venha a ter efectiva aplicação quando, neste momento face à grave crise económica e financeira que se vive, o mesmo governo não quer executar medidas de apoio social. Lembrar uma frase do presidente Jorge Sampaio que, a propósito dos mesmíssimos argumentos dos deficits orçamentais dizia que havia vida para além do défice. 
E há muita vida! 
Mas o mesmo governo que se recusa a dar a mão aos portugueses apoia de forma descarada cidadãos de outros países, cidadãos reformados com reformas douradas a virem viver para Portugal sem terem de pagar quaisquer impostos. Isso mesmo foi denunciado pela ministra das Finanças da Suécia. Os cidadãos reformados do seu país instalam-se no paraíso fiscal que é Portugal para não pagarem impostos, nem na Suécia nem em Portugal. 
E, no entanto os portugueses pagam, a bem pagar, toda a rebaldaria instalada. 
O vergonhoso da situação o que revela a tal resiliência falaciosa dos vários governos instalados e demais poderes usurpadores é que desde 2002 que existe uma convenção entre os dois países para que se acabe com a farsa. 
Mas Portugal nada fez. 
Em 2019 os dois países aceitaram rever a situação altamente lesiva para os cidadãos e só a Suécia retificou o acordo. 
Portugal meteu-o numa qualquer gaveta. 
Cansados de esperar a Suécia, pela voz da ministra das Finanças, veio denunciar a situação e quer rasgar o acordo, unilateralmente, e obrigar os seus cidadãos a pagarem os impostos devidos no seu país. 
Mas a ministra das Finanças vai mais longe e diz que é “interessante” e até “fascinante” observar “a forma como os cidadãos comuns em Portugal aceitam isto”. 
A senhora ministra nem sabe, nem sonha, o que se passa neste jardim à beira-mar plantado. Quando há gente que se revolta pelo facto de Portugal receber emigrantes que fogem da guerra, da miséria e da pobreza e se cala perante o facto de reformados milionários da Suécia virem de malas feitas para Portugal para fugirem dos impostos, diz tudo de um gentalha sem escrúpulos e sem rigor de atitude. Faltam valores e princípios neste Portugal senhora ministra. 
Não são apenas os reformados suecos a beneficiarem da imbecilidade dos governantes. 
A Suécia é apenas o sexto país a beneficiar com este estado de injustiça fiscal. 
A senhora ministra pode imaginar um insignificante cidadão comprar uma empresa com dinheiro dos contribuintes e passar de ordinário cidadão a milionário? 
É que o dinheiro que recebeu para comprar a empresa ainda lhe permitiu ascender ao Olimpo dos bem aventurados do país. 
A senhora ministra saberá que a desigualdade de tratamento entre cidadãos portugueses é outra faceta «interessante» e «fascinante»? Saberá que a maioria dos portugueses pagam todos os impostos, na actividade ou na reforma, mas os poderosos têm estatuto próprio, estão isentos de pagarem impostos sejam eles de transacções comerciais sejam de mais valias. 
A senhora ministra conhece a aberração que são os ajustes directos? 
Uma fórmula inventada pelos salteadores da coisa pública para agilizarem negociatas onde se chega ao cúmulo de ser a mesma empresa a apresentar as tais três propostas para o concurso em apreço? 
Tem toda a razão senhora ministra quando diz que é ignóbil um paciente sueco e um paciente português estarem lado a lado num hospital português, e o cidadão português que pagou impostos pelos dois, porque os suecos têm todos os direitos — cuidados de saúde, transportes públicos —, mas não pagam impostos. 
E só faltou mesmo foi dizer que o paciente sueco usufrui pela sua reforma quatro ou cinco vezes mais que o contribuinte português. 
E falta falar-lhe em tantos outros casos que devem ser do seu conhecimento, como por exemplo, esvaziamento de bancos. 
Sabe senhora ministra, nós já tivemos um prémio Nobel da literatura, como é do seu conhecimento. 
Tivemos ao longo da nossa História, de mais de oito séculos, vários e ilustres escritores que nos foram definindo como povo. 
Houve um que nos caracterizou de forma eloquente. Chamou-se Guerra Junqueiro que um dia escreveu esta coisa fascinante sobre a forma de ser do povo português: « Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta». 
Pelas suas análises, senhora ministra, até parece que leu esse grande escritor português do século XIX. 
Obrigado senhora ministra pelo alerta de consciências de um povo adormecido pela ilusão do amanhã que nunca chega. 
Tenham uma boa semana.

(Crónica Rádio F - 29 de Março 2021)