Soube-se esta semana que a Espanha quer deixar de ter
comboios noturnos a circularem e como consequência Portugal deixaria
de ter o histórico e mítico Sud-Express a fazer a ligação entre
Lisboa e Hendaye e a consequente ligação ao TGV para outros
destinos. Uma notícia que pouco ou nenhum interesse mereceu da
comunicação social e muito menos do próprio governo. Falou-se dos
problemas estruturais do novo aeroporto de Lisboa, da nova ponte
sobre o rio Douro, no Porto, dos problemas laborais na GroundForce e
dos habituais problemas da TAP. Mas do meio de transporte que marcou
gerações e que ligava um país atrasado ao mundo civilizado pouco
ou nada se disse. Como chegou a dizer Eça de Queiroz as modas de
Paris chegam-nos sempre atrasadas pelo SudExpress. Corre
o ano da graça de 1887. A 21 de Outubro, parte de Paris o novíssimo
Sud-Express, comboio de luxo tendo por destino Lisboa. A composição,
que dispõe de duas carruagens-cama e restaurante, chega à Estação
de Santa Apolónia 43 horas depois, num domingo 23 de Outubro de
1887, segundo a imprensa da época. Estranhamente, ou talvez não, a
família real está ausente de Lisboa. Não há a pompa e
circunstância tão comum nestes acontecimentos. Nem houve Te Deum ou
procissões que marcavam, como noutras épocas, o anúncio, lá por
terras do Brasil, do achado de minas de ouro ou de diamantes. Nada.
Ausência total da corte que não percebia, como nunca percebeu o
verdadeiro interesse do desenvolvimento de um país. A corte e as
cortes com vestes republicanas também não perceberam. Muito
provavelmente preferiram a caça ao progresso. Em
1914, contudo, a Primeira Guerra Mundial interrompe a circulação,
que só foi retomada em 1921. A marcha, porém, tornou-se mais lenta
devido às dificuldades decorrentes do conflito. A
Guerra Civil de Espanha impõe novas restrições às ligações
ferroviárias. Vivem-se tempos de crise na Europa e os comboios
sofrem alterações constantes nos seus trajectos. De veículo
privilegiado de cultura, o Sud-Express passa então a assegurar uma
nova função: a de meio de fuga de cidadãos perseguidos rumo à
liberdade. Há histórias de coragem e de muito sofrimento que marcam
a fuga por parte milhares de cidadãos, mormente judeus. Sem dinheiro
para a fuga muitos lutam desesperadamente por um lugar no SudExpress
que os livrará do terror e horror nazi.
Curiosamente, anos mais tarde o sentido da fuga é o inverso. Para os jovens começava a desenhar-se a ameaça da guerra em África. Milhares desertam da guerra e fogem no SudExpress para terras da Europa. Mas não foram só os desertores à guerra colonial. Foram igualmente milhares de cidadãos que fugiam da miséria deste país. Procuravam em terras de França o pão que lhes era negado. O comboio, nomeadamente o Sud- Express foi o meio mais utilizado para se conseguir o célebre salto. Aqui pela Guarda transaccionavam-se planos de fuga. A transacção era feita de forma discreta, com a indicação que a travessia das fronteiras era feita a pé. Os viajantes faziam-se acompanhar de farnéis bem portugueses: quilos de bacalhau, sacos de couves e garrafões de vinho. Entre 1963 e 1973 mais de
de um milhão de portugueses emigraram clandestinamente. A grande maioria desembarcava na mítica ‘Gare d’Austerlitz’. Os que viajavam sem papéis desciam diversas vezes do Sud-Express e passavam as fronteiras a pé. A PIDE controlava todo o trajecto do comboio. Era preciso ter olho vivo e pé ligeiro como o frisou um dos muitos que deu o salto. Para muitos emigrantes este é o seu comboio. Faz parte deles. E eles fazem parte da História do SudExpress. Procuravam o bilhete mais acessível, mesmo sabendo que na cama se vai muito melhor, muitas vezes vamos sentados. «Contudo uma coisa é certa, para ir ter contigo, até de pé vou se for necessário, pois a viagem só é penosa no regresso quando tu ficas e eu regresso a Lisboa, ou quando eu fico e tu regressas a Donostia. Farei mais 1001 viagens não importa como vá, deitado, sentado ou em pé, importa é ir para te poder abraçar», dizia um emigrante. Mas o SudExpress foi também forma de ganhar dinheiro extra para compensar os magros ordenados. Era o contrabando que se fazia. A lista dos produtos é imensa, com café e tabaco à cabeça. O guarda-fiscal que passava revista à cozinha do comboio não imaginava quantos sacos de café por ali se escondiam. A PIDE tinha um compartimento reservado para viajar no Sud e "tinha que andar um empregado do comboio com uma pasta de madeira onde se guardavam as fichas de quem era procurado, mas qualquer coisa era pretexto para fazerem a vida negra a alguém. A prepotência e as chantagens que se cometiam eram atrozes. Histórias de chantagens para obter favores sexuais de mulheres que iam ter com os maridos a França. Durante uma época a carruagem-restaurante era desatrelada e ficava em Vilar Formoso, enquanto o resto do comboio seguia para Lisboa. Nessa altura a carruagem transformava-se em casino para pides, guarda-fiscais e funcionários da alfândega. Perdia-se e ganhava-se dinheiro e faustosamente comiam e bebiam do melhor servidos pelos funcionários do SudExpress. Mas esta é uma história feita de sacrifícios que nos querem fazer apagar da memória. Preservar a memória histórica não significa viver do passado, muito menos impedir o desenvolvimento, mas conservar o conhecimento dos nossos ancestrais, ajudando-nos a lembrar de onde viemos e de quem realmente somos. Não reconhecer isso é negar a nossa história como povo.
Curiosamente, anos mais tarde o sentido da fuga é o inverso. Para os jovens começava a desenhar-se a ameaça da guerra em África. Milhares desertam da guerra e fogem no SudExpress para terras da Europa. Mas não foram só os desertores à guerra colonial. Foram igualmente milhares de cidadãos que fugiam da miséria deste país. Procuravam em terras de França o pão que lhes era negado. O comboio, nomeadamente o Sud- Express foi o meio mais utilizado para se conseguir o célebre salto. Aqui pela Guarda transaccionavam-se planos de fuga. A transacção era feita de forma discreta, com a indicação que a travessia das fronteiras era feita a pé. Os viajantes faziam-se acompanhar de farnéis bem portugueses: quilos de bacalhau, sacos de couves e garrafões de vinho. Entre 1963 e 1973 mais de
de um milhão de portugueses emigraram clandestinamente. A grande maioria desembarcava na mítica ‘Gare d’Austerlitz’. Os que viajavam sem papéis desciam diversas vezes do Sud-Express e passavam as fronteiras a pé. A PIDE controlava todo o trajecto do comboio. Era preciso ter olho vivo e pé ligeiro como o frisou um dos muitos que deu o salto. Para muitos emigrantes este é o seu comboio. Faz parte deles. E eles fazem parte da História do SudExpress. Procuravam o bilhete mais acessível, mesmo sabendo que na cama se vai muito melhor, muitas vezes vamos sentados. «Contudo uma coisa é certa, para ir ter contigo, até de pé vou se for necessário, pois a viagem só é penosa no regresso quando tu ficas e eu regresso a Lisboa, ou quando eu fico e tu regressas a Donostia. Farei mais 1001 viagens não importa como vá, deitado, sentado ou em pé, importa é ir para te poder abraçar», dizia um emigrante. Mas o SudExpress foi também forma de ganhar dinheiro extra para compensar os magros ordenados. Era o contrabando que se fazia. A lista dos produtos é imensa, com café e tabaco à cabeça. O guarda-fiscal que passava revista à cozinha do comboio não imaginava quantos sacos de café por ali se escondiam. A PIDE tinha um compartimento reservado para viajar no Sud e "tinha que andar um empregado do comboio com uma pasta de madeira onde se guardavam as fichas de quem era procurado, mas qualquer coisa era pretexto para fazerem a vida negra a alguém. A prepotência e as chantagens que se cometiam eram atrozes. Histórias de chantagens para obter favores sexuais de mulheres que iam ter com os maridos a França. Durante uma época a carruagem-restaurante era desatrelada e ficava em Vilar Formoso, enquanto o resto do comboio seguia para Lisboa. Nessa altura a carruagem transformava-se em casino para pides, guarda-fiscais e funcionários da alfândega. Perdia-se e ganhava-se dinheiro e faustosamente comiam e bebiam do melhor servidos pelos funcionários do SudExpress. Mas esta é uma história feita de sacrifícios que nos querem fazer apagar da memória. Preservar a memória histórica não significa viver do passado, muito menos impedir o desenvolvimento, mas conservar o conhecimento dos nossos ancestrais, ajudando-nos a lembrar de onde viemos e de quem realmente somos. Não reconhecer isso é negar a nossa história como povo.
Tenham uma boa semana.
(Crónica na Rádio F - 22 de Março de 2021)