Na
semana em que se comemora o 25 de Abril não podia deixar de falar da data. Não pelo
lado do simbolismo, dos arranjos florais, das bonitas e versejantes frases de
salão, enfim, do politicamente correto.
É
o lado da História que me toca, a consciência de um momento único e
irrepetível, como são todos aqueles que mudam para sempre o nosso destino
colectivo. O 25 de Abril de 1974 foi uma revolução, e as revoluções provocam –
por definição – uma mudança abrupta no poder político. Ficou na minha memória
uma revolução assente nos três D do programa do Movimento das Forças Armadas:
Democratizar, Descolonizar e Desenvolver. Muito haveria para dizer acerca do
cumprimento ou do incumprimento de cada um destes objetivos. Apesar dessa
ambiguidade e da tarefa hercúlea que o povo português teve de enfrentar, foi
possível construir pontes para a ultrapassagem de alguns desses desafios. Um
deles é aquele que me permite estar a falar-vos disto nesta minha crónica.
Esqueçamos,
por momentos, o muito que nos foi prometido e que nunca foi alcançado. Hoje, nas
vésperas da comemoração de uma das mais importantes datas da contemporaneidade
portuguesa, africana e também europeia, tenho de recordar aqui alguém que
merece um destaque muito especial. Falo obviamente de Salgueiro Maia.
A
História consagra-o como o maior exemplo de coragem do 25 de Abril.
Naquele dia, Salgueiro Maia teve o seu encontro com o destino de todos nós. Que
os mais novos nunca esqueçam que foi ao princípio da madrugada, na parada da
Escola Prática de Cavalaria, que Salgueiro Maia afirmou perante 240 homens:
"Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado: os
Estados sociais, os corporativos e o estado a que chegámos. Ora, nesta noite
solene, vamos acabar com o estado a que chegámos!". E a verdade é que
acabou mesmo…
Todos
os que poderiam ter hesitado cederam ao carisma de Salgueiro Maia. Às três e
meia da manhã, dez viaturas blindadas atravessaram a porta de armas da Escola
Prática de Cavalaria, comandadas pelo capitão sem medo, com o objectivo de atingir...
Toledo, o nome de código para o Terreiro do Paço e os seus ministérios, ou
seja, o coração do regime. A partir desse momento os passos do capitão
confundiram-se com a história da própria revolução. Ao longo do dia ele viria a
correr as situações de maior perigo e de tensão, as quais enfrentou com invulgar
serenidade.
Ao
fim da tarde daquela quinta-feira o cerco militar montado no Terreiro do Paço
forçou o presidente do Conselho, Marcello Caetano, à rendição. Sempre avesso a
privilégios e a honrarias, Salgueiro Maia, recordado como o capitão sem medo,
desapareceu a 4 de Abril de 1992, deixando à laia de epitáfio uma das frases
que mais conformam o seu carácter e o espírito das suas acções: «Não se
preocupem com o local onde sepultar o meu corpo. Preocupem-se é com aqueles que
querem sepultar o que ajudei a construir.»
Sofia
de Mello Breyner Andresen homenageou-o de forma divinal com o poema que passo a
ler:
Aquele que na hora da vitória respeitou
o vencido
Aquele que deu tudo e não pediu a paga
Aquele que na hora da ganância
Perdeu o apetite
Aquele que amou os outros e por isso
Não colaborou com a sua ignorância ou
vício
Aquele
que foi «Fiel à palavra dada à ideia tida» como antes dele mas também por ele Pessoa
disse.
Se
Salgueiro Maia não fosse só por si um dos maiores vultos da portugalidade, o
contraste entre ele e tudo o que de seguida nos caiu em cima não deixaria de o
elevar ao estatuto daquilo que nunca seremos. Somos todos, mas todos, tão
pequeninos à beira dele. Sobretudo aqueles que mais beneficiaram, bem ou mal,
da revolução.
Tenham
um muito bom dia.
(Crónica na Rádio F - 24 de Abril 2017)