sexta-feira, abril 21, 2017

Ponto de Vista


O Ministério Público arquivou o processo contra o ex-ministro e ex-conselheiro de Estado Dias Loureiro. Na sua pronúncia de arquivamento o Ministério Público confessou a sua incapacidade para obter provas suficientes da prática de crime, pesem embora os muitos indícios existentes. Significa isto que não concluiu pela inexistência de crime, nem que os arguidos no processo não o tenham praticado. Fez até constar as suas suspeitas no fim do processo, nomeadamente quando afirmou que as complexas operações financeiras mais não foram do que uma cortina de fumo para tirar dinheiro do BPN em benefício dos arguidos.

Conhecida esta decisão, logo o ex-ministro, ex-conselheiro de Estado e ex-deputado do PSD, Loureiro, veio a público bater com a mão no peito, considerando tudo isto como uma aberração, uma aberração absoluta.

Há duas formas de se olhar para tudo isto. Uma é a de Loureiro, circunscrita às questões legais e de mera forma processual. Outra é a do senso comum, nem sempre compatível com as leis.

Toda a gente já percebeu que um bando de ministros, primeiros-ministros, deputados, magistrados, banqueiros, jornalistas, comentadores, etc., se uniu, conscientemente ou não, para criar e defender um sistema que permite que coisas destas continuem a acontecer. Esse sistema, para funcionar, precisa de toda essa nata social e do adequado embrulho de uma justiça lenta, burocrática e corporativa, muito convenientemente barricada nos chamados direitos fundamentais.

Dou um exemplo que todos percebem. Se por acaso se descobrir que um qualquer sem-abrigo tem uma fortuna de 100 mil milhões de euros, é o Estado que tem de provar de onde veio tanto dinheiro, e não o sem-abrigo que tem de explicar como lhe deitou mão.

Por isso que ninguém se admire que Loureiro tenha aproveitado o sistema para se mostrar “estarrecido” com as "insinuações" que diz existirem num despacho de arquivamento de um processo em que era suspeito de burla qualificada, branqueamento e fraude fiscal. A mera leitura das 99 páginas do despacho de arquivamento revela — para uma pessoa de inteligência média, é certo — para que servia a arquitetura das operações e das decisões envolvidas, mas Loureiro nem sequer conseguiu estar ao nível de um sem-abrigo – que seria calar-se – e não resistiu a vestir as vestes de virgem ofendida.

Pelo meio ficam sem resposta as dúvidas sobre os 13 mil milhões que já doámos à agiotagem, os crimes do GES e do BES, do BANIF, das PPP rodoviárias, das manigâncias da Parque Escolar, dos despautérios do BPN e do BPP, da desnatação e desmanche da PT, das fortunas sem qualquer explicação lógica e razoável, etc., etc.

É tudo rapaziada que já ficou impune nos primeiros ciclos de vampirização dos recursos públicos – como o foram os perdões fiscais de Oliveira e Costa, os desvios do Fundo Social Europeu, as derrapagens das obras públicas de Cavaco. Era o que faltava caírem agora, muitos deles já reformados e bem reformados, com as vidas de luxo para filhos, genros e enteados bem gizadas e com o tempo repartido entre passeios com os netos e almoços com aqueles jornalistas e magistrados que contam.

Lamentavelmente, não podemos conhecer uma parte substancial do processo, uma vez que 1138 folhas das 2830 que constituem o mesmo não podem ser consultadas por decisão do DCIAP, que igualmente proibiu a consulta dos anexos e apensos, numa decisão muito provavelmente ilegal mas difícil e morosa de combater. Assim é-nos impossível saber quanto tempo esteve o processo parado e porquê, quais as exatas dificuldades com que se deparou, ou até qual o real entusiasmo do Ministério Público.

A única certeza com que ficámos, para além da indignação de Dias Loureiro, é que no fim quem paga a conta são os mesmos de sempre. Como disse um dia Martin Luther King «nada no mundo é mais perigoso do que a ignorância sincera e a estupidez conscienciosa».
 
Um bom dia para todos.
 
(Crónica na Rádio F - 17 de Abril 2017)