Os negócios e a vergonha ou a falta dela
Na vigência do executivo camarário de Joaquim Valente, a Câmara Municipal da Guarda decidiu alugar o antigo “edifício do bacalhau” e cedê-lo à família Raimundo para esta aí instalar a sua escola profissional da Guarda.
A Ensiguarda, assim denominada, assumiu de imediato para muitos militantes do PS uma natureza de poder magnético e as ligações entre a autarquia e a direção da escola nunca passaram de aí em diante despercebidas aos mais atentos. Pelo meio, o edifício sofreu obras de restauro e outras mais-valias que ajudaram a promover o negócio da família Raimundo. Julgo não estar equivocado se recordar aqui que a autarquia procedeu ao pagamento de uma renda mensal de 2 mil euros durante um ano, com o compromisso adicional de comprar o imóvel no final de 2010. No caso de não o comprar, a renda seria atualizada para os 25 mil euros mensais.
Ora, o executivo de Valente nem comprou o edifício, nem terá pago as rendas. Por isso o assunto resvalou para os tribunais. Como o edifício foi entretanto comprado pela fundação proprietária do estabelecimento de ensino, está criada uma espécie de imbróglio, o qual não impediu no entanto o atual ministro da educação de vir à Guarda lançar a primeira pedra naquilo que se anuncia como a nova residência de estudantes da Ensiguarda.
No discurso de celebração, o senhor ministro afirmou claramente, sem revelar os dados que lhe permitiram dizê-lo, que a escola profissional da Guarda era um exemplo de sucesso. Claro que o senhor ministro não explicou porque é que veio à Guarda visitar uma escola de direito privado e não visitou uma escola pública que fosse.
Tal como é digno de nota que o executivo camarário comandado por Álvaro Amaro tenha concedido 10 mil euros de subsídio à escola da família Raimundo. Quero crer que a aproximação das eleições autárquicas não passa de uma simples e inoportuna coincidência no meio de tudo isto. Tal como há-de ser apenas coincidência a presença de certas pessoas na sessão de lançamento da recandidatura de Álvaro Amaro…
Entretanto, fazendo jus àquele tipo de coisas a que já estamos habituados, enquanto os nossos impostos subsidiam a construção de residências de negócios privados, há jovens do ensino público a terem de pagar os seus transportes numa escolaridade dita obrigatória. Nada que deva espantar-nos ou indignar-nos profundamente. É que a Guarda sempre foi pequenina neste tipo de coisas. Ou antes, como diria a métrica política, sempre foi grande. Grandes interesses, grandes conhecimentos e relacionamentos ainda maiores. Dos grandiosos e paquidérmicos resultados, nem vale a pena falarmos.
Há quem chame nomes muito feios a todas estas misturas entre aquilo que é público e privado. Outros, eufemística ou ideologicamente motivados, chamam-lhe sentido de oportunidade ou empreendedorismo. Eu chamo-lhe simplesmente falta de pudor.
Quando penso em tudo o que se poderia ter feito com os dinheiros públicos desbaratados nos últimos anos, sinto um nó na garganta mais apertado do que os atacadores dos meus sapatos. Creio que não será caso para eu passar a trabalhar de chinelos, mas lá que me apetecia distribuir umas chineladas, isso apetecia.
É confrangedor ver um ministro vir ao beija-mão de um negócio destes, só para mostrar que existe. Ainda o hei-de ver a inaugurar algum parque de estacionamento de uma escola ou coisa de um nível ainda mais baixo. Não seria por acaso.
Diz-nos o latim que qualquer um pode ser ministro, mas muito poucos poderão algum dia ser maestros. De facto, “maestro” provém de magíster (magis = mais), enquanto “ministro” provém de minister (minus = menos). Assim, numa qualquer área de conhecimentos, magíster é sempre a autoridade, enquanto minister é quando muito o seu aprendiz. O que não me recordo de os romanos terem explicado de forma tão clara, é que quando a fome aperta, a vergonha desaparece.
Ou coisa do género.
(Crónica jornal O Interior - 12 de Abril 2017)