quinta-feira, janeiro 12, 2017

Ponto de Vista


Dadas as circunstâncias, não posso deixar de vos falar de Mário Soares. Mas desenganem-se aqueles que esperam que eu me curve perante o politicamente correto, como tem sucedido com tanta gente nos últimos dias.

O respeito, muito respeito devido à memória de Mário Soares, não é incompatível com as críticas que a História lhe há-de fazer.

Devo confessar que em muitas alturas estive frontalmente contra ele. Mas também não é isso que me leva a discordar da tese generalizada de que ele é o pai da democracia portuguesa. O pai, ou antes, os pais da democracia portuguesa foram, antes de mais, os capitães de Abril. A mãe é aquele velho princípio da História segundo o qual quem constrói o futuro são as sociedades na sua dialética. Mário Soares terá sido, quando muito, com todo o mérito, um dos mais proeminentes padrinhos.

Ficará para a História a sua luta contra Salazar e a ditadura, a sua prisão, deportação e posterior exílio. Assim como o seu abandono da militância no  Partido Comunista e a fundação do Partido Socialista dois anos antes do 25 de Abril. Convém, quando se analisam estes factos, recordar que muitos políticos, de que são exemplo Durão Barroso, José Lamego, Pacheco Pereira ou Nuno Crato, também migraram da esquerda ou da extrema-esquerda para outros quadrantes políticos, mas fizeram-no depois do 25 de Abril, quando era muito mais fácil mudar-se de opinião e de rumo.

Em oposição a estes méritos, Mário Soares verá sempre o seu nome associado, para o bem e para o mal, ao difícil processo de descolonização, onde granjeou muitos dos seus viscerais inimigos.

Mais tarde confrontaria o Partido Comunista com a célebre manifestação da Fonte Luminosa. Meteu o socialismo na gaveta e coligou-se com o PSD e o CDS. Detestava arranjos à esquerda. Daí para a frente ficou-se pela ideia de uma Europa solidária que o tempo veio a demonstrar ter perna curta e permitiu, em coligação com a direita, a primeira intervenção do FMI em Portugal.

Dos seus mandatos como Presidente da República ficam as presidências abertas, símbolo de um tempo de tensão com o primeiro-ministro de então, Cavaco Silva, que as olhava como “forças de bloqueio”. Mais famosas ainda, as célebres viagens pelo mundo com passeatas em elefantes e tartarugas.

Não vou aqui elencar todo o seu trajeto político, nomeadamente o seu papel na adesão ao projeto europeu, mas não posso deixar de aludir aos seus vários equívocos e apoios a candidatos da direita e zangas com amigos como Salgado Zenha e Manuel Alegre. Ou à sua decisão de se reformar, para vir depois dar o dito por não dito e partir para mais uma aventura política nas presidenciais de 2011, com os exíguos resultados que se conhecem.

Só depois de se ter retirado da vida política ativa, se revelou uma nova faceta da vida de Mário Soares. Tirou o radicalismo da gaveta aonde metera o socialismo e começou a promover reuniões na Aula Magna com personalidades bem posicionadas à esquerda. Criticou as posições de Blair e da sua família política, no que à Europa dizia respeito. Curiosamente, dizendo-se laico, aproximou-se no fim da vida das posições do papa Francisco. Mas não só.

Poucos homens terão na nossa História suscitado em simultâneo tanto aplauso e ódio. O que nem deveria admirar-nos, olhando para o trajeto arrojado mas por vezes errático de Mário Soares. Cometeu muitos erros, mas seria impossível não o ter feito quando se abalançava àquilo a que mais ninguém tinha coragem. Um exemplo disso mesmo foi o seu apoio quase isolado a José Sócrates.

De facto, Mário Soares nunca esquecia os amigos e aqueles que o tinham abençoado. Foi dos poucos que visitou o camarada de partido na prisão em Évora defendendo-o, na minha opinião exageradamente, sempre que o entendeu. Ficou-lhe bem a singeleza e fiúza do gesto mas, com o devido respeito, como um dia disse Millôr Fernandes «O pior não é morrer. É não poder espantar as moscas.».
 
Tenham uma boa semana.
 
(Crónica na Rádio F - 9 de Janeiro de 2017)