Dadas
as circunstâncias, não posso deixar de vos falar de Mário Soares. Mas
desenganem-se aqueles que esperam que eu me curve perante o politicamente
correto, como tem sucedido com tanta gente nos últimos dias.
O
respeito, muito respeito devido à memória de Mário Soares, não é incompatível
com as críticas que a História lhe há-de fazer.
Devo
confessar que em muitas alturas estive frontalmente contra ele. Mas também não
é isso que me leva a discordar da tese generalizada de que ele é o pai da democracia
portuguesa. O pai, ou antes, os pais da democracia portuguesa foram, antes de
mais, os capitães de Abril. A mãe é aquele velho princípio da História segundo
o qual quem constrói o futuro são as sociedades na sua dialética. Mário Soares terá
sido, quando muito, com todo o mérito, um dos mais proeminentes padrinhos.
Ficará
para a História a sua luta contra Salazar e a ditadura, a sua prisão,
deportação e posterior exílio. Assim como o seu abandono da militância no Partido Comunista e a fundação do Partido
Socialista dois anos antes do 25 de Abril. Convém, quando se analisam estes
factos, recordar que muitos políticos, de que são exemplo Durão Barroso, José
Lamego, Pacheco Pereira ou Nuno Crato, também migraram da esquerda ou da extrema-esquerda
para outros quadrantes políticos, mas fizeram-no depois do 25 de Abril, quando
era muito mais fácil mudar-se de opinião e de rumo.
Em
oposição a estes méritos, Mário Soares verá sempre o seu nome associado, para o
bem e para o mal, ao difícil processo de descolonização, onde granjeou muitos dos
seus viscerais inimigos.
Mais
tarde confrontaria o Partido Comunista com a célebre manifestação da Fonte
Luminosa. Meteu o socialismo na gaveta e coligou-se com o PSD e o CDS.
Detestava arranjos à esquerda. Daí para a frente ficou-se pela ideia de uma
Europa solidária que o tempo veio a demonstrar ter perna curta e permitiu, em
coligação com a direita, a primeira intervenção do FMI em Portugal.
Dos
seus mandatos como Presidente da República ficam as presidências abertas,
símbolo de um tempo de tensão com o primeiro-ministro de então, Cavaco Silva,
que as olhava como “forças de bloqueio”. Mais famosas ainda, as célebres
viagens pelo mundo com passeatas em elefantes e tartarugas.
Não
vou aqui elencar todo o seu trajeto político, nomeadamente o seu papel na
adesão ao projeto europeu, mas não posso deixar de aludir aos seus vários
equívocos e apoios a candidatos da direita e zangas com amigos como Salgado Zenha
e Manuel Alegre. Ou à sua decisão de se reformar, para vir depois dar o dito
por não dito e partir para mais uma aventura política nas presidenciais de
2011, com os exíguos resultados que se conhecem.
Só
depois de se ter retirado da vida política ativa, se revelou uma nova faceta da
vida de Mário Soares. Tirou o radicalismo da gaveta aonde metera o socialismo e
começou a promover reuniões na Aula Magna com personalidades bem posicionadas à
esquerda. Criticou as posições de Blair e da sua família política, no que à
Europa dizia respeito. Curiosamente, dizendo-se laico, aproximou-se no fim da
vida das posições do papa Francisco. Mas não só.
Poucos
homens terão na nossa História suscitado em simultâneo tanto aplauso e ódio. O
que nem deveria admirar-nos, olhando para o trajeto arrojado mas por vezes
errático de Mário Soares. Cometeu muitos erros, mas seria impossível não o ter
feito quando se abalançava àquilo a que mais ninguém tinha coragem. Um exemplo
disso mesmo foi o seu apoio quase isolado a José Sócrates.
De
facto, Mário Soares nunca esquecia os amigos e aqueles que o tinham abençoado.
Foi dos poucos que visitou o camarada de partido na prisão em Évora
defendendo-o, na minha opinião exageradamente, sempre que o entendeu. Ficou-lhe
bem a singeleza e fiúza do gesto mas, com o devido respeito, como um dia disse
Millôr Fernandes «O pior não é morrer. É não poder espantar as moscas.».
Tenham
uma boa semana.
(Crónica na Rádio F - 9 de Janeiro de 2017)