quinta-feira, janeiro 05, 2017

Ponto de Vista


Entrou há dias em vigor uma nova lei que obriga qualquer entidade, pública ou privada, a atender prioritariamente pessoas com deficiência, grávidas, pessoas acompanhadas de crianças de colo e pessoas com mais de 65 anos de idade.

Estes direitos e deveres que já estavam mais ou menos consignados, por exemplo, em organismos públicos como as repartições de finanças, são agora alargados a praticamente todas as situações em que exista o denominado “atendimento presencial ao público”.

Obviamente que nunca serei contra leis que procuram obter um efeito comportamental sociologicamente correto. Mas desenganem-se aqueles que acreditam que são leis deste tipo que mudam realmente as coisas.

Não sei quantas pessoas seriam capaz de identificar aqui a lei que proíbe atirar lixo para o chão, na via pública. Eu, por exemplo, nem sei se existe uma lei dessas. Acredito que a maior parte das pessoas também a desconheçam. Limitam-se a não atirar lixo para o chão por uma questão de civilidade. Será reduzidíssimo, se é que existe, o n.º de pessoas que algum dia não atiraram lixo para o chão apenas pelo receio de serem multadas.

As sociedades são mesmo assim, vivem cada vez mais numa espécie de paranoia do política ou civicamente correto, tentando resolver com leis aquilo que julgam ser os seus pecados originais. As leis são efetivamente necessárias, mas ainda está por provar que em certas situações sejam uma melhor solução do que a simples educação de base.

A pretexto desta obsessão por leis que nos querem ensinar a sermos cidadãos perfeitos, recordo-me de há uns tempos ter vislumbrado um debate nas redes sociais a propósito de uma outra matéria, a do campismo selvagem. Em Portugal, legalmente, só se pode fazer campismo, isto é, montar uma tenda e dormir dentro dela, num parque de campismo ou num leque de muito poucas outras situações bem delimitadas por lei. No norte da Europa, em países como a Escócia ou a Noruega, prevalece a cultura de que a natureza é para ser fruída e por isso pode acampar-se, por exemplo, no meio da serra da Estrela lá do sítio, o que inclui as margens dos belíssimos lagos que por ali existem. Cá, seria um crime ambiental com direito a coima!

O mais interessante é que a lei sobre este assunto, campismo selvagem, por exemplo, na Noruega, não ocupa mais de uma página A4 e meia. Chama-se “Lei de Livre Acesso à Natureza” e, como todas as leis naquele país, teve de passar o filtro de um painel de crianças com 10 anos de idade, antes de ser publicada. Se as crianças não tivessem demonstrado que ela era simples e compreensível até para uma criança, nunca teria visto a luz do dia.

Por cá, e regressando à lei sobre o atendimento, fala-se em pessoas que apresentem, e passo a citar, “evidente alteração ou limitação das funções físicas ou mentais”. Ou em pessoa, e volto a citar, “que, por motivo de perda ou anomalia, congénita ou adquirida, de funções ou de estruturas do corpo, incluindo as funções psicológicas, apresente dificuldades específicas susceptíveis de, em conjugação com os factores do meio, lhe limitar ou dificultar a actividade e a participação em condições de igualdade com as demais pessoas”. Perceberam alguma coisa? Pois bem, eu também não. E muito menos se tivesse que me debater com este articulado no meio de uma discussão sobre a prioridade de atendimento numa fila para pagar o IMI na repartição de finanças do meu bairro.

No caso das grávidas, a coisa é ainda pior. Cada um, sabendo-se que muitas gravidezes podem só ser exteriormente percebidas a partir do 5.º ou 6.º mês, que acredite ou não na invocação do direito. Só falta mais uma lei a exigir às grávidas uma declaração médica para este efeito…

Para resolver problemas, por favor não liguem o complicómetro. Basta educar as crianças e fazer leis simples que elas percebam. É que se para Honoré de Balzac a burocracia era um gigantesco mecanismo governado por pigmeus, para mim e certamente para muita gente não passa da arte de converter o fácil em difícil por meio do inútil.
 
Muito Bom Ano para todos.
 
(Crónica Rádio F - 2 de Janeiro 2017)