terça-feira, janeiro 05, 2016

Ponto de vista


Iniciado que está o ano de 2016, não poderia esta crónica deixar de falar de expectativas. De preferência, curto e grosso, como deve ser.
O primeiro dia do ano é, desde 1968, o dia internacional da paz. Chovem mensagens de circunstância invocando a muita esperança, paz e amor que se deseja para o mundo. Não fora o eufórico cenário que normalmente acompanha tais invocações, por vezes já bem regadas com álcool q. b. e convenientemente acompanhadas por música e foguetório da época, julgaria até estar perante um daqueles concursos de misses em que uma qualquer loira bem platinada e melhor descascada tenta fazer-nos crer que até deseja mais a paz para o mundo do que ganhar o próprio concurso…
Tais palavras bonitas, sobretudo na boca de políticos, leva-as o vento. Já Chaplin dizia, na sua demolidora sensatez, que “Num filme o que importa não é a realidade, mas o que dela possa extrair a imaginação”. Na vida real passa-se um pouco o mesmo. De facto, o problema destas coisas é sempre o dia seguinte. Dou só aqui um exemplo em como não vai haver paz nenhuma no mundo e tudo se repetirá num interminável ciclo de ódio e sofrimento.
Logo no 2.º dia do ano, a Arábia Saudita executou 47 pessoas, entre os quais um clérigo xiita, por alegadamente serem terroristas. Estas mortes - a maior execução em massa desde 1980 - surgem no meio do recrudescimento de uma guerra de palavras entre a Arábia Saudita e o Estado Islâmico, que é acusado de perpetuar ataques no país. Mas estas execuções também podem reacender as tensões com o Irão depois da execução do proeminente clérigo xiita. Aliás, Teerão já havia avisado no ano passado que a execução do clérigo custaria caro à Arábia Saudita. Por isso espera-se o pior.
Talvez os ouvintes pensem que isto é um assunto que se desenrola lá longe, nuns países governados por gente louca e atrasada mas com muito dinheiro, onde radicais barbudos se dedicam a tentar travar os ponteiros do relógio da História. Mas não. No mundo árabe xiita e não só, porque a própria Turquia também já foi afetada, assiste-se a manifestações de repulsa e de ódio. Contra quem? Contra a Arábia Saudita? Nem por isso. É sobretudo contra os EUA e o Ocidente que essa raiva islâmica está a ser orientada. E porquê? Porque o regime saudita, um dos mais corruptos e assassinos do mundo, é há décadas apoiado pelos americanos e tolerado pela generalidade dos governos ocidentais. A Arábia Saudita passou inclusivamente a liderar – muito recentemente – a Comissão de Direitos Humanos da ONU, graças à pressão americana e não oposição da Europa. É um pouco como se fosse entregue a Hitler e à Gestapo a presidência do Comité de Salvação dos Judeus! E hipocrisias destas têm um preço.
Ou seja, o novo ano começa com um acontecimento dramático que, para uma imensa fação do islamismo, é vista como uma espécie de declaração de guerra instigada pelo Ocidente. Talvez por isso já não me admire que os nossos políticos, agora, tenham adquirido o hábito de juntar aos pedidos de paz e amor o desejo de menos terrorismo. Compreende-se bem porquê.
A verdade é que o ano novo começou igualzinho ao ano velho porque - por muito bem-intencionados que todos sejamos - não é fazendo votos a cada meia dúzia de passas engolidas que o mundo se despovoa da cáfila de malfeitores que o destroem, apropriando-se em privado dos bens que são de todos e organizando as pessoas em exércitos e rebanhos ao serviço de interesses que nada têm a ver com aquilo que deveria ser de todos.
Acreditar que cada novo ano é capaz de trazer a paz é assim o mesmo que passar a vida inteira à espera de um milagre, sabendo nós que os únicos milagres que existem são aqueles que resultam da boa obra de cada um de nós, e por isso são sempre minúsculos. E mesmo para tal são precisas convicções, coerência e coragem. Coisas difíceis de prevalecerem quando os 30 homens mais ricos do mundo detêm mais de 50 % da riqueza do planeta. Por isso, paz, só se for a da ganância, opressão, desigualdade e morte.
Assim sendo, resta-me desejar-vos um ano com força mental suficiente para sobrevivermos a tudo o que de mau aí vem.

Muito bom dia a todos!

(Crónica na Rádio F – 04 de Janeiro de 2016)