Iniciado
que está o ano de 2016, não poderia esta crónica deixar de falar de
expectativas. De preferência, curto e grosso, como deve ser.
O
primeiro dia do ano é, desde 1968, o dia internacional da paz. Chovem mensagens
de circunstância invocando a muita esperança, paz e amor que se deseja para o
mundo. Não fora o eufórico cenário que normalmente acompanha tais invocações,
por vezes já bem regadas com álcool q. b. e convenientemente acompanhadas por
música e foguetório da época, julgaria até estar perante um daqueles concursos
de misses em que uma qualquer loira bem platinada e melhor descascada tenta
fazer-nos crer que até deseja mais a paz para o mundo do que ganhar o próprio concurso…
Tais
palavras bonitas, sobretudo na boca de políticos, leva-as o vento. Já Chaplin
dizia, na sua demolidora sensatez, que “Num filme o que importa não é a
realidade, mas o que dela possa extrair a imaginação”. Na vida real passa-se um
pouco o mesmo. De facto, o problema destas coisas é sempre o dia seguinte. Dou
só aqui um exemplo em como não vai haver paz nenhuma no mundo e tudo se
repetirá num interminável ciclo de ódio e sofrimento.
Logo
no 2.º dia do ano, a Arábia Saudita executou 47 pessoas, entre os quais um
clérigo xiita, por alegadamente serem terroristas. Estas mortes - a maior
execução em massa desde 1980 - surgem no meio do recrudescimento de uma guerra
de palavras entre a Arábia Saudita e o Estado Islâmico, que é acusado de
perpetuar ataques no país. Mas estas execuções também podem reacender as
tensões com o Irão depois da execução do proeminente clérigo xiita. Aliás, Teerão
já havia avisado no ano passado que a execução do clérigo custaria caro à
Arábia Saudita. Por isso espera-se o pior.
Talvez
os ouvintes pensem que isto é um assunto que se desenrola lá longe, nuns países
governados por gente louca e atrasada mas com muito dinheiro, onde radicais
barbudos se dedicam a tentar travar os ponteiros do relógio da História. Mas
não. No mundo árabe xiita e não só, porque a própria Turquia também já foi
afetada, assiste-se a manifestações de repulsa e de ódio. Contra quem? Contra a
Arábia Saudita? Nem por isso. É sobretudo contra os EUA e o Ocidente que essa
raiva islâmica está a ser orientada. E porquê? Porque o regime saudita, um dos
mais corruptos e assassinos do mundo, é há décadas apoiado pelos americanos e
tolerado pela generalidade dos governos ocidentais. A Arábia Saudita passou
inclusivamente a liderar – muito recentemente – a Comissão de Direitos Humanos
da ONU, graças à pressão americana e não oposição da Europa. É um pouco como se
fosse entregue a Hitler e à Gestapo a presidência do Comité de Salvação dos
Judeus! E hipocrisias destas têm um preço.
Ou
seja, o novo ano começa com um acontecimento dramático que, para uma imensa
fação do islamismo, é vista como uma espécie de declaração de guerra instigada
pelo Ocidente. Talvez por isso já não me admire que os nossos políticos, agora,
tenham adquirido o hábito de juntar aos pedidos de paz e amor o desejo de menos
terrorismo. Compreende-se bem porquê.
A
verdade é que o ano novo começou igualzinho ao ano velho porque - por muito
bem-intencionados que todos sejamos - não é fazendo votos a cada meia dúzia de
passas engolidas que o mundo se despovoa da cáfila de malfeitores que o
destroem, apropriando-se em privado dos bens que são de todos e organizando as
pessoas em exércitos e rebanhos ao serviço de interesses que nada têm a ver com
aquilo que deveria ser de todos.
Acreditar
que cada novo ano é capaz de trazer a paz é assim o mesmo que passar a vida
inteira à espera de um milagre, sabendo nós que os únicos milagres que existem
são aqueles que resultam da boa obra de cada um de nós, e por isso são sempre
minúsculos. E mesmo para tal são precisas convicções, coerência e coragem.
Coisas difíceis de prevalecerem quando os 30 homens mais ricos do mundo detêm mais
de 50 % da riqueza do planeta. Por isso, paz, só se for a da ganância,
opressão, desigualdade e morte.
Assim
sendo, resta-me desejar-vos um ano com força mental suficiente para sobrevivermos
a tudo o que de mau aí vem.
Muito
bom dia a todos!
(Crónica
na Rádio F – 04 de Janeiro de 2016)