terça-feira, novembro 28, 2023

Ponto de Vista

Comemora-se hoje o octingentésimo vigésimo quarto aniversário da atribuição da carta de foral pelo rei D. Sancho I à Guarda.
Antes de receber o foral, a Guarda não passava de uma comunidade de pequena dimensão, dinamizada por colonos locais, guardada por uma qualquer atalaia ou torre que vigiava a circulação de gentes e bens que percorriam a vias principais do planalto beirão.
Em 1199, D. Sancho I, celebrizado com o cognome de “O Povoador”, lavra o Foral da Guarda, marcando a centralidade da linha de fronteira neste vasto espaço. A partir desse momento a Guarda torna-se um importante centro urbano. Resguardada pelos concelhos avançados, desenvolveu a sua vocação urbana e mercantil, aproveitando a posição estratégica.
O monarca bem que poderia ser uma referência para muitos dos políticos da nossa região, mas igualmente do próprio país. Desde logo na percepção da importância em povoar estas terras, mas também outras paragens, e potenciar igualmente a excelente localização do território. Lembrar que segundo as crónicas D. Sancho I assinou 58 cartas de foral, o que mostra a importância que o monarca dava à existência de população na região. Organiza a vida administrativa na base dos forais. E reforça cumulativamente o poder das ordens militares contra a nobreza.
Para D. Sancho I no condado havia apenas um senhor e esse senhor era o Rei.
A teoria de D. Sancho I não era consensual. Desde logo por que interferia com os vários poderes, nomeadamente com os do poder clerical.
Conquistado o território aos mouros, o clero achava-se no direito de exercer neles o seu poder. O poder do clero era exercido de uma forma vincada e abusadora. Daí as grandes disputas entre D. Sancho I e os bispos. Ficando famosas as lutas com o bispo do Porto, com o bispo de Coimbra, e por tal o rei D. Sancho I foi excomungado e o reino foi interdito.
D. Sancho I não quebrou perante o poder clerical. E nas terras dos bispos quem mandava era o rei. Quem cobrava impostos era o rei. Esta luta do poder real contra os poderes instalados era uma luta pela independência de Portugal.
A obra de D. Sancho I na organização do condado é de uma enorme grandeza. Mas não nos podemos esquecer que o monarca foi vítima de uma epidemia que arrasou a Europa de então: a lepra. O que levou o próprio Papa numa missiva enviada ao monarca português a inferir que a doença de que o rei padecia era um castigo pelo mal que tinha feito aos bispos.
D. Sancho I fez de Portugal um país do futuro, um país em que o senhor dos fidalgos é nenhum, em que o verdadeiro senhor é o povo, mas que os vindouros não souberam, não quiseram dar continuidade.
Hoje o território está cada vez mais abandonado, por falta de população devido às políticas dos decisores de toda a espécie de poderes. Capciosamente chamam-lhes territórios de baixa densidade populacional. Cada vez mais a redução do número de habitantes é assustadora.
Perdem-se investimentos por incúria, inércia e inépcia dos poderes instalados. Os filhos da terra abandonam-na. Mas se o povoamento das terras era prioritário para o monarca, outros aspectos não menos importantes caracterizaram o seu reinado.
D. Sancho I dedicou muito do seu esforço governativo à organização política, administrativa e económica do seu reino. Acumulou um tesouro real e incentivou o desenvolvimento de uma classe média de comerciantes e mercadores. D. Sancho I sabendo que o reino não tinha população suficiente para o amanho e defesa das terras, socorreu-se da mão de obra de muitos imigrantes.
O rei é também lembrado pelo seu gosto pelas artes e literatura, tendo deixado ele próprio vários volumes com poemas. No seu reinado sabe-se que alguns portugueses frequentaram universidades estrangeiras a expensas do próprio soberano. Comemorar a atribuição do foral à Guarda pode, nos tempos que correm, ser motivo para divulgar iniciativas dos novos reis que se passeiam engalanados pela feira das vaidades. Caem na fútil ilusão de enganarem os seus súbditos. O tempo e o modo farão esquecer falsas quimeras. Não basta depositar uma coroa de flores na estátua do rei que possibilitou a criação da cidade quando a mesma é retirada do lugar central de uma praça e colocada em lugar secundário como se houvesse algo a esconder ou a envergonhar. Há isso, sim, desrespeito e falta de memória pelos que de obras e feitos da lei da morte foram-se libertando. Uma estátua que serve de mictório a todo o tipo de animais irracionais. Uma irracionalidade extensiva a quem não teve nem tem memória. Sem o lugar proeminente que em tempos já teve na praça central da cidade é revelador da falta de conhecimento e reconhecimento. Deixem-se de hipocrisias. A lepra com que o rei morreu foi com ele para o túmulo na Igreja de Santa Cruz em Coimbra. Acabe-se com essa estúpida ideia de se julgar que a estátua tem ainda algum sinal dessa epidemia. Honre-se a nossa História e saiba-se ser digno da grandeza dos que abriram as portas da nossa existência como povo. Aquele que em definitivo confirmou a importância da cidade, mas que outros vindouros a esquecem por mais propaganda falsa que inundem os tão célebres discursos de circunstância.
Tenham um bom feriado e lembrem-se daquele a quem o devemos.

(Crónica Rádio F - 27 de Novembro 2023)