Amanhã é dia de comemorar o 25 de Abril. Mas comemorar o quê, pergunta-se! O ritual que se quer impor à comemoração do 25 de Abril é o exemplo da ascensão e assunção do tempo para esquecer o que aquele movimento, primeiro militar e depois popular, representou para um país na mais profunda miséria onde a França era o Brasil do operário nas palavras do José Mário Branco. Comemorar o 25 de Abril torna-se quase um acto de coragem face a tanta dissertação de tudólogos que tudo querem deturpar. A verdadeira festa do 25 de Abril durou 19 meses. Os que queriam e ansiavam por uma democracia liberal, representativa venceram. E deu no que temos visto. Nepotismo, corrupção a rodos, assunção aos lugares de chefia dos do aparelho partidário, falência total dos serviços públicos que se conquistaram nos 19 meses de festa popular e não se honram os compromissos e a pobreza alastra. As revoluções não são golpes de Estado. Nesses 19 meses três milhões de cidadãos em Portugal em greves, manifestações, ocupações, lutas sociais, construíram o que de melhor este país teve em 49 anos. Associá-las a um viés ditatorial, caótico, não reconhecendo que foram elas, com o seu trabalho e formas de luta que construíram o Serviço Nacional de Saúde com a nacionalização de Misericórdias por médicos, enfermeiros, outros trabalhadores e o povo na primeira linha, a Segurança Social, a educação universal, é alinhar com a ideia, hoje dominante, de que as maiorias não podem fazer nada de bom. Não há pais nem mães da democracia nem dos serviços públicos, houve isso sim uma vontade popular de tomar em mãos as necessidades primárias de um povo que queria o desenvolvimento do país. Nunca tanta gente decidiu tanto na história deste pequeno país. Uma história total, ambicionada por todos, não é só a história dos resistentes. Mas não pode ser feita sem a história dos resistentes. Dos que não aceitaram as ordens sem primeiro as contestar, discutir e votar. O direito ao trabalho, que, entretanto, se perdeu, conquistou-se entre 1974 e 1975. Vota-se de tempos em tempos, quando a elite assim o quer. Chamam o povo às urnas para escolher os seus representantes na Assembleia da República ou nas autarquias. Todos os outros poderes não são eleitos. São impostos aos cidadãos por meio das nomeações. O tempo de hoje, aliado do descuido e adverso à história, já relativizou o significado da data. Durante as últimas décadas, uma «classe política» sem referências humanistas, volúvel e estrangeirada – o adjectivo mais adequado é apátrida –, usurpou a democracia e montou um regime económico, político, social e mediático em Portugal no qual se comporta como uma entidade marginal em relação aos fins últimos do desenvolvimento do país. O que existe, na realidade, é um monopólio do controlo das mentes manobrado por centrais de propaganda transnacionais e globalistas. A liberdade de expressão e informação não pode ser impedida ou limitada por qualquer tipo ou forma de censura. O tempo do lápis azul dos abrutalhados coronéis já lá vai; agora o terrorismo censório é muito mais sofisticado, extremamente nocivo, mas provavelmente indolor para a maioria da população. O presidente do Supremo Tribunal de Justiça alertou recentemente para a ameaça a uma comunicação social livre e independente que representa o haver órgãos na posse de poderosos grupos económicos que os usam em defesa de interesses próprios. Resta assim pouco espaço para ser cidadão português em Portugal. Agora que começam a celebrar-se os 50 anos de Abril é altura propícia para restaurar princípios da Revolução, de conteúdo verdadeiramente popular, que não se extinguiram, apenas estão amordaçados. Lembrando Chico Buarque, «Já murcharam tua festa, pá/Mas certamente/Esqueceram uma semente/Nalgum canto de jardim/». Assim se espera e deseja.
Tenham uma boa semana.