sexta-feira, agosto 02, 2019

Homenagem ao Zeca

A propósito do Zeca Afonso lembrei-me de uma crónica do Manuel António Pina.

« Vampiros e eunucos


Há 24 anos, feitos ontem, morreu José Afonso. Entretanto, vindos "em
bandos, com pés de veludo", os vampiros foram progressivamente ocupando
todos os lugares de esperança inaugurados em 1974, e hoje (basta olhar
em volta) os "mordomos do universo todo/ senhores à força, mandadores
sem lei", enchem de novo "as tulhas, bebem vinho novo" e "dançam a ronda
no pinhal do rei", tendo, em tempos
afrontosamente desiguais, ganho inaceitável literalidade o refrão "eles
comem tudo, eles comem tudo/ eles comem tudo e não deixam nada".


Talvez, mais do que legisladores, artistas como José Afonso sejam,
convocando Pound, "antenas de raça". Ou talvez apenas olhem com olhos
mais transparentes e mais fundos. Ou então talvez a sua voz coincida com
a voz colectiva por transportar alguma espécie singular de verdade.
Pois, completando Novalis, também o mais verdadeiro é necessariamente
mais poético.

O certo é que a "fauna hipernutrida" de "parasitas
do sangue alheio" que José Afonso entreviu na sociedade portuguesa de há
mais de meio século está aí de novo, nem sequer com diferentes vestes;
se é que alguma vez os seus vultos deixaram de estar "pousa[dos] nos
prédios, pousa[dos] nas calçadas". E, com ela, o cortejo venal dos
"eunucos" que "em vénias malabares à luz do dia/ lambuzam da saliva os
maiorais".

Lembrar hoje José Afonso pode ser, mais do que um ritual melancólico, um gesto de fidelidade e inconformismo.»

(Jornal de Notícias, 24.02.2011)

Obrigado a Manuel António Pina.
O povo português, estou ciente disso, nunca esquecerá o Zeca.
Zeca não é património de ninguém.
É de todo um povo em luta!
Sempre!