Se
me dissessem que um dia se assistiria à peixeirada política e mediática em que
se transformou a discussão sobre a legitimidade de um governo com apoio à
esquerda, nunca teria acreditado. Tendemos, de forma quase natural e
despreocupada, a aceitar como garantido - decorridos que estão mais de 40 anos
após o 25 de Abril - que todos compreendem os fundamentos e os mecanismos que
fazem trabalhar a máquina da democracia. Mas, de facto, percebo-o agora, não é
bem assim…
A
possibilidade de uma deriva dita “estalinista” ou “frentista” do arco da
governação não veio, ao contrário daquilo que se possa pensar, inquietar uma
imensa direita. Essa direita já há muito que andava inquietada pela
impossibilidade de reverter totalmente aquilo que considera em silêncio como a
mais perigosa e abjeta das coisas: a conquista de direitos sociais à custa de
uma revolução que um dia a apeou liminarmente do poder.
Se
dúvidas houvesse é só atentarmos nas repetidas e intencionais investidas sobre
a Constituição durante os últimos 4 anos. Tenho a certeza de que nenhum clube
de futebol ou de qualquer outro desporto detém a nível mundial um record de
vitórias tão assertivo quanto o das pafiosas tentativas de subversão da suprema
lei do país.
Esta
direita de que falo odeia tudo. Odeia os comunistas que comem criancinhas ao
pequeno-almoço. Odeia a possibilidade de alternativas. Odeia quem pensa
diferente. Odeia os russos. Odeia os cubanos, os norte-coreanos e os ladrões de
courelas. Odeia os drogados e os mal-vestidos. Odeia o que não seja cristão e
os refugiados. Odeia o PREC. Odeia os pobres e o que não seja do extremo. Mas
odeia também os ricos que sejam diferentes. Odeia a Constituição e por vezes
até odeia a Nação. E só não se odeia a si mesma porque quando lá chega já
gastou o ódio todo.
Esta
direita é tão imaterial que nem aparece nas votações. Mas anda por aí, bem
escondidinha nos partidos. E nos comentadores e entrevistadores do sistema,
aquelas peças da engrenagem que, à custa do óleo certo, vão lubrificando a
máquina da propaganda e da inevitabilidade dos resgates e das austeridades. E
de tudo o que for preciso.
Esta
direita não reparou, ou nunca quis reparar, que há países da Europa em que, por
exemplo, o 1.º ministro pertence ao 5.º partido mais votado. Ou em que o CDS lá
do sítio já foi obrigado a governar com o BE lá do sítio. E que esses países
não são menos democráticos do que o nosso.
Essa
direita, se pudesse, já tinha desenterrado as mocas de Rio Maior ou incendiado
umas quantas sedes do PCP e do BE. Ou enchido a Alameda numa Marcha de
Caçarolas perfumada a Chanel nº 5. Já tinha mandado para o Tarrafal das
Berlengas os seus inimigos políticos. E enchido o Estádio Nacional de comunas,
esquerdalhos e socialistas tresmalhados. Se isso não resultasse, teria
ressuscitado Salazar. Mas o problema é que não pode. E não pode porque simplesmente
não consegue.
A
pergunta que fica é “porquê”? Porquê este ódio à democracia? Porquê esta raiva
e intolerância? Porquê este desespero? Eu acho, na minha humilde simplicidade,
que é a força do hábito. Isto é, esta direita de que falo está há 40 anos no
poder. Ou antes, nem precisa de lá estar. É uma direita a quem basta ser, sem
se revelar. E quem assim é, não gosta de perder.
Pese
embora a minha profunda descrença na natureza humana e o arrasto de
desesperança com que carrego a minha ideia sobre o futuro, há sobretudo uma
coisa que já percebi que esta direita nunca aceitará: o direito dos outros a
falhar. Ela pode tudo, até isso. Os outros, nem sequer isso.
Esta
direita sabe, melhor do que ninguém, que quanto maior o poder, mais perigoso é
o abuso. E agora teme simplesmente que seja ao contrário.
A
relação desta direita com o poder traz-me à memória uma expressão famosa: “O
poder só pode agradar aos tolos ou aos predestinados. Os tolos desejam-no pelas
vantagens que dele esperam. Os predestinados gozam-no pelo que para eles
representa”. O curioso é que quem proferiu esta afirmação se chamava António de
Oliveira Salazar.
Muito bom dia a todos.
(Crónica na Rádio F - 9 de Novembro 2015)