terça-feira, novembro 10, 2015

Ponto de Vista


Se me dissessem que um dia se assistiria à peixeirada política e mediática em que se transformou a discussão sobre a legitimidade de um governo com apoio à esquerda, nunca teria acreditado. Tendemos, de forma quase natural e despreocupada, a aceitar como garantido - decorridos que estão mais de 40 anos após o 25 de Abril - que todos compreendem os fundamentos e os mecanismos que fazem trabalhar a máquina da democracia. Mas, de facto, percebo-o agora, não é bem assim…

A possibilidade de uma deriva dita “estalinista” ou “frentista” do arco da governação não veio, ao contrário daquilo que se possa pensar, inquietar uma imensa direita. Essa direita já há muito que andava inquietada pela impossibilidade de reverter totalmente aquilo que considera em silêncio como a mais perigosa e abjeta das coisas: a conquista de direitos sociais à custa de uma revolução que um dia a apeou liminarmente do poder.

Se dúvidas houvesse é só atentarmos nas repetidas e intencionais investidas sobre a Constituição durante os últimos 4 anos. Tenho a certeza de que nenhum clube de futebol ou de qualquer outro desporto detém a nível mundial um record de vitórias tão assertivo quanto o das pafiosas tentativas de subversão da suprema lei do país.

Esta direita de que falo odeia tudo. Odeia os comunistas que comem criancinhas ao pequeno-almoço. Odeia a possibilidade de alternativas. Odeia quem pensa diferente. Odeia os russos. Odeia os cubanos, os norte-coreanos e os ladrões de courelas. Odeia os drogados e os mal-vestidos. Odeia o que não seja cristão e os refugiados. Odeia o PREC. Odeia os pobres e o que não seja do extremo. Mas odeia também os ricos que sejam diferentes. Odeia a Constituição e por vezes até odeia a Nação. E só não se odeia a si mesma porque quando lá chega já gastou o ódio todo.

Esta direita é tão imaterial que nem aparece nas votações. Mas anda por aí, bem escondidinha nos partidos. E nos comentadores e entrevistadores do sistema, aquelas peças da engrenagem que, à custa do óleo certo, vão lubrificando a máquina da propaganda e da inevitabilidade dos resgates e das austeridades. E de tudo o que for preciso.

Esta direita não reparou, ou nunca quis reparar, que há países da Europa em que, por exemplo, o 1.º ministro pertence ao 5.º partido mais votado. Ou em que o CDS lá do sítio já foi obrigado a governar com o BE lá do sítio. E que esses países não são menos democráticos do que o nosso.

Essa direita, se pudesse, já tinha desenterrado as mocas de Rio Maior ou incendiado umas quantas sedes do PCP e do BE. Ou enchido a Alameda numa Marcha de Caçarolas perfumada a Chanel nº 5. Já tinha mandado para o Tarrafal das Berlengas os seus inimigos políticos. E enchido o Estádio Nacional de comunas, esquerdalhos e socialistas tresmalhados. Se isso não resultasse, teria ressuscitado Salazar. Mas o problema é que não pode. E não pode porque simplesmente não consegue.

A pergunta que fica é “porquê”? Porquê este ódio à democracia? Porquê esta raiva e intolerância? Porquê este desespero? Eu acho, na minha humilde simplicidade, que é a força do hábito. Isto é, esta direita de que falo está há 40 anos no poder. Ou antes, nem precisa de lá estar. É uma direita a quem basta ser, sem se revelar. E quem assim é, não gosta de perder.

Pese embora a minha profunda descrença na natureza humana e o arrasto de desesperança com que carrego a minha ideia sobre o futuro, há sobretudo uma coisa que já percebi que esta direita nunca aceitará: o direito dos outros a falhar. Ela pode tudo, até isso. Os outros, nem sequer isso.

Esta direita sabe, melhor do que ninguém, que quanto maior o poder, mais perigoso é o abuso. E agora teme simplesmente que seja ao contrário.

A relação desta direita com o poder traz-me à memória uma expressão famosa: “O poder só pode agradar aos tolos ou aos predestinados. Os tolos desejam-no pelas vantagens que dele esperam. Os predestinados gozam-no pelo que para eles representa”. O curioso é que quem proferiu esta afirmação se chamava António de Oliveira Salazar.
Muito bom dia a todos.

(Crónica na Rádio F - 9 de Novembro 2015)